walking
alone by karyokinez at Deviantart
Caminhava sobre os pés
macios e o chão viajava ao sabor do seu destino. Sem pressa. Na cabeça, ou mais
dentro de si ainda, a melodia ornamenta-se em volutas. Diáfanas, como são as
nuvens de uma manhã de primavera. Seguia apenas o pensamento. Nada o detinha,
nem se detinha. Em nada. Cada palavra que lhe nascia nas entranhas tinha um
signo preciso. E mágico. E precioso. Seria assim desde sempre, e também para
todo o sempre. Não se reconhecia gente e, se falava, era para que as sombras de
outros se desviassem do seu percurso, para que não as magoasse, nem se ferisse
num embate etéreo e fugaz, tanto mais rápido quanto o ponteiro dos dias. Assim chamava
ao seu tempo, nessa muito sua voz, só. Enigmática e hermética. Selada. Nada
seria suposto saber-se para além do que testemunhava e, mesmo quando dois
pensamentos se teriam de cruzar, um esperava que o outro se fosse, arrumado,
até que de novo fosse necessária a sua evocação. Só apareceria assim. Esperando
que lhe fosse dada a vez para se dar a conhecer, porque sendo, ou tendo sido
um, já não seria mais o mesmo. Tinha disso a plena consciência. Cada coisa
valeria só por si e apenas uma vez. De cada vez.
Num intervalo entre os
dias, sentou-se numa pedra. Antes ainda, olhou em redor e viu que o sol se
aconchegava ao seu lado direito. Movia-se, como só o sol sabe mover-se,
silencioso e altivo, para as suas costas. Sentou-se então para que ficassem de
frente, ele, o sol e toda a distância que ainda os separa, pedindo licença ao
rochedo anónimo que o acolheu com agrado. Permitiu-se sorrir ao afagá-lo,
sentindo-o cálido para a hora. Com a temperatura exacta que lhe aliviaria as
pernas já um tanto fatigados do seu fado. Não tendo parado sequer quando teve
sede e passou a vau um regato manso já não ali perto. Saciou-se ao tocar com
todo o cuidado o musgo da pedra que ficava no lado da sombra. Essa frescura
preenche-o e foi bom.
Libertou-se de tudo
quanto trazia e assim, despido de certezas, banhou-se na dúvida, mergulhando na
sua profundeza, até ao limite onde os peixes e todos os outros animais aí já
não precisam dos olhos, contemplando cada coisa, pelo que era cada coisa e examinando
também todas as outras coisas, que eram tão só, todas as outras coisas,
permitiu-se notar o que cada coisa tinha para lhe dizer e o que cada coisa
tinha a dizer a todas as outras coisas e a ouvir de cada coisa o que essa coisa
não dizia, pois era esse o momento em que mais diziam. Confessando-se no seu
silêncio. Na ausência. Nesse ponto, que não era o centro, nem a periferia, nem
o que fica entre o centro e a periferia e também o que fica para além do centro
e da periferia, nesse todo, confundia-se, camuflava-se desse todo, de tal
forma, que um observador ocasional, apenas veria uma pedra, com musgo,
ligeiramente húmido no lado oposto ao do que o sol alumiava e se fosse mais
atento, teria notado que a pedra se dividia em duas partes, nada iguais, e com
temperaturas e tonalidades também diferentes e que, se se observasse com mais
atenção ainda o chão à sua volta, veria uma sombra imperceptívelmente maior do que
a sombra que o sol provocava da pedra, só. Desse modo, o não visto, o que não
se deixava ver, nem observar, nada vendo nem olhando, era o todo que o
observador via.
Quando, no ombro naquele
que se não vislumbrava, um grande pássaro pousar, que para uns será uma enorme
águia-real, para outros, um mocho diurno, porque os há, diurnos, e se por
acaso, o sol já tivesse desenhado uma sombra mais comprida no chão a partir da
pedra, essa ave poderia ser um morcego, que levantará o seu voou logo de
seguida, no caminho da noite. O que não se vislumbra veria uma Fénix e esta
seria a sua irmã, que de morta nas cinzas se reconstruía na união dessa matéria
inerte e liberta, já fria, renascendo, tornando-se a fénix e ele um só, por
todo o tempo que durasse esse dia, que só a noite poderia extinguir.
Vogava. Despido, ainda
conserva numa mão o passado e na outra, o futuro. Quando achar oportuno, unirá
as duas e terá o presente nas suas mãos. Unidas. Os dedos e a carne. E o tempo.
LAM; Contos in Findos, Junho 2015, Edições Afa-Zer