terça-feira, 23 de junho de 2015

Porque a memória é um beco com saída




walking alone by karyokinez at Deviantart

Caminhava sobre os pés macios e o chão viajava ao sabor do seu destino. Sem pressa. Na cabeça, ou mais dentro de si ainda, a melodia ornamenta-se em volutas. Diáfanas, como são as nuvens de uma manhã de primavera. Seguia apenas o pensamento. Nada o detinha, nem se detinha. Em nada. Cada palavra que lhe nascia nas entranhas tinha um signo preciso. E mágico. E precioso. Seria assim desde sempre, e também para todo o sempre. Não se reconhecia gente e, se falava, era para que as sombras de outros se desviassem do seu percurso, para que não as magoasse, nem se ferisse num embate etéreo e fugaz, tanto mais rápido quanto o ponteiro dos dias. Assim chamava ao seu tempo, nessa muito sua voz, só. Enigmática e hermética. Selada. Nada seria suposto saber-se para além do que testemunhava e, mesmo quando dois pensamentos se teriam de cruzar, um esperava que o outro se fosse, arrumado, até que de novo fosse necessária a sua evocação. Só apareceria assim. Esperando que lhe fosse dada a vez para se dar a conhecer, porque sendo, ou tendo sido um, já não seria mais o mesmo. Tinha disso a plena consciência. Cada coisa valeria só por si e apenas uma vez. De cada vez.
Num intervalo entre os dias, sentou-se numa pedra. Antes ainda, olhou em redor e viu que o sol se aconchegava ao seu lado direito. Movia-se, como só o sol sabe mover-se, silencioso e altivo, para as suas costas. Sentou-se então para que ficassem de frente, ele, o sol e toda a distância que ainda os separa, pedindo licença ao rochedo anónimo que o acolheu com agrado. Permitiu-se sorrir ao afagá-lo, sentindo-o cálido para a hora. Com a temperatura exacta que lhe aliviaria as pernas já um tanto fatigados do seu fado. Não tendo parado sequer quando teve sede e passou a vau um regato manso já não ali perto. Saciou-se ao tocar com todo o cuidado o musgo da pedra que ficava no lado da sombra. Essa frescura preenche-o e foi bom.
Libertou-se de tudo quanto trazia e assim, despido de certezas, banhou-se na dúvida, mergulhando na sua profundeza, até ao limite onde os peixes e todos os outros animais aí já não precisam dos olhos, contemplando cada coisa, pelo que era cada coisa e examinando também todas as outras coisas, que eram tão só, todas as outras coisas, permitiu-se notar o que cada coisa tinha para lhe dizer e o que cada coisa tinha a dizer a todas as outras coisas e a ouvir de cada coisa o que essa coisa não dizia, pois era esse o momento em que mais diziam. Confessando-se no seu silêncio. Na ausência. Nesse ponto, que não era o centro, nem a periferia, nem o que fica entre o centro e a periferia e também o que fica para além do centro e da periferia, nesse todo, confundia-se, camuflava-se desse todo, de tal forma, que um observador ocasional, apenas veria uma pedra, com musgo, ligeiramente húmido no lado oposto ao do que o sol alumiava e se fosse mais atento, teria notado que a pedra se dividia em duas partes, nada iguais, e com temperaturas e tonalidades também diferentes e que, se se observasse com mais atenção ainda o chão à sua volta, veria uma sombra imperceptívelmente maior do que a sombra que o sol provocava da pedra, só. Desse modo, o não visto, o que não se deixava ver, nem observar, nada vendo nem olhando, era o todo que o observador via.
Quando, no ombro naquele que se não vislumbrava, um grande pássaro pousar, que para uns será uma enorme águia-real, para outros, um mocho diurno, porque os há, diurnos, e se por acaso, o sol já tivesse desenhado uma sombra mais comprida no chão a partir da pedra, essa ave poderia ser um morcego, que levantará o seu voou logo de seguida, no caminho da noite. O que não se vislumbra veria uma Fénix e esta seria a sua irmã, que de morta nas cinzas se reconstruía na união dessa matéria inerte e liberta, já fria, renascendo, tornando-se a fénix e ele um só, por todo o tempo que durasse esse dia, que só a noite poderia extinguir.

Vogava. Despido, ainda conserva numa mão o passado e na outra, o futuro. Quando achar oportuno, unirá as duas e terá o presente nas suas mãos. Unidas. Os dedos e a carne. E o tempo.

LAM; Contos in Findos, Junho 2015, Edições Afa-Zer



quinta-feira, 18 de junho de 2015

II



No caminho está só
Aquilo que é
A sombra do que não é


LAM, Haiku, Junho de 2015


domingo, 14 de junho de 2015

As a Silent Bruit

Enjoy!

As a Silent Bruit – Tracklist

  1. Jungle Talk - Jungle Birdsong – Echoes of Nature: The Natural Sounds of the Wilderness - Delta Distribution; 1993
  2. A Produce – An Indian Surface - Trance Port: Trance Port Special Editions ‎– tpse-cd-111; 2005
  3. Cello + Laptop ‎– La Souriante Madame Beudet - Parallel Paths: Envelope Collective ‎– ENVCD03; 2012
  4. Arno Peeters – Aud Entity (Extended Version) – Aeroson: Mille Plateaux ‎– mp38; 1996
  5. Hilary Hahn & Hauschka – Stillness – Silfra: Deutsche Grammophon ‎– 00289 479 0303, 2012
  6. Turkey Talk - Jungle Talk: Echoes of Nature: The Natural Sounds of the Wilderness – Delta Distribuition, 1993
  7. Max Richter – Blue Notebooks - The Blue Notebooks: 130701 ‎– CD13-04, 2004
  8. Stephan Mathieu ‎– Akira Rabelais […] Edit - Full Swing Edits: Orthlorng Musork ‎– ORTH 05, 2001
  9. Echoes of Nature – Low Tide – Disc 2 - Echoes of Nature: The Natural Sounds of the Wilderness Delta Distribuition, 1993
  10. Arovane – Nostalghia I – Eleeve - Not On Label (Arovane Self-Released) ‎– none, 2015
  11. John Cage – In a Landscape by Alexei Lubimov ‎– Der Bote; ECM New Series ‎– 461 812-2, 2002
  12. Pink Floyd – Is There Anybody Out There? – The Wall (luMar edit); PC2 36183, 36183 US, 1979




quinta-feira, 11 de junho de 2015

A re-banho


wolf/lamb by swantelope at deviantart

Tu,
Que carneiro te pensas
E como carneiro te ages,
Segues
O carreiro que todos
Os carneiros
Seguem
Confiando que é
De carneiro
o carreiro
que seguem
Que tanto
se abstraem do bafo do
Lobo
E no lodo caem,
Na boca
Do lobo.



LAM; o Paradigma do Pombo Molhado; Edições Afa-Zer, 2015


[ ! ]


Thinking Ape by Sean Keil

“Confiar em quem?
Confiar no quê?
Eis a dúvida”


LAM; um dia depois, Junho de 2015