segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Siar



Os anjos não tem sexo
Preferem ver os outros
Os anjos tem asas
Mas são os corvos que voam
Os anjos são servos
Mas deus não precisa deles
Os anjos são brincalhões
Mas as suas brincadeiras não tem piada
A não ser para os anjos
Os anjos são bem comportados
Os outros não tem educação
Os anjos dormem a horas certas
E não precisam de despertador
Os anjos são brancos.
Porquê?
Os anjos são velozes e vêm longe.
Os homens são parvos e precisam de óculos
Os anjos são diabos ao contrário
As crianças são homens pequenos, mas não precisam de óculos
Para ver os anjos.
E não são parvos.
Os anjos gostam de comboios
As crianças brincam com comboios
Os anjos são crianças
As crianças são anjos adultos
Eu sou uma criança
Já me nasceram as asas.

Ensinas-me a voar?

LAM

quarta-feira, 15 de julho de 2015


(criança com balão by Bansky)

Não só o silêncio não julga, como também perdoa.

(autor conhecido)


quinta-feira, 9 de julho de 2015

Soneto XX


[ foto do autor ]

Sinto de ti a distância dos astros
A mesma que nos afasta do vento
Sinto em ti a ausência do tempo
O mesmo que passa nos claustros

Onde o tempo não tem razão
Tão sem tempo para pousar
Tudo o que diz é um só falar
Palavras que caem, no chão

Sei em ti o esquecimento
Esse a que me votei
Sem pertença a nenhum momento

Sem que me reveja no horizonte
Nesse distante que é só teu
Permaneço de pé, errante,

(neste caminho, que é só meu!)


LAM; Sonetos, Julho 2014

terça-feira, 23 de junho de 2015

Porque a memória é um beco com saída




walking alone by karyokinez at Deviantart

Caminhava sobre os pés macios e o chão viajava ao sabor do seu destino. Sem pressa. Na cabeça, ou mais dentro de si ainda, a melodia ornamenta-se em volutas. Diáfanas, como são as nuvens de uma manhã de primavera. Seguia apenas o pensamento. Nada o detinha, nem se detinha. Em nada. Cada palavra que lhe nascia nas entranhas tinha um signo preciso. E mágico. E precioso. Seria assim desde sempre, e também para todo o sempre. Não se reconhecia gente e, se falava, era para que as sombras de outros se desviassem do seu percurso, para que não as magoasse, nem se ferisse num embate etéreo e fugaz, tanto mais rápido quanto o ponteiro dos dias. Assim chamava ao seu tempo, nessa muito sua voz, só. Enigmática e hermética. Selada. Nada seria suposto saber-se para além do que testemunhava e, mesmo quando dois pensamentos se teriam de cruzar, um esperava que o outro se fosse, arrumado, até que de novo fosse necessária a sua evocação. Só apareceria assim. Esperando que lhe fosse dada a vez para se dar a conhecer, porque sendo, ou tendo sido um, já não seria mais o mesmo. Tinha disso a plena consciência. Cada coisa valeria só por si e apenas uma vez. De cada vez.
Num intervalo entre os dias, sentou-se numa pedra. Antes ainda, olhou em redor e viu que o sol se aconchegava ao seu lado direito. Movia-se, como só o sol sabe mover-se, silencioso e altivo, para as suas costas. Sentou-se então para que ficassem de frente, ele, o sol e toda a distância que ainda os separa, pedindo licença ao rochedo anónimo que o acolheu com agrado. Permitiu-se sorrir ao afagá-lo, sentindo-o cálido para a hora. Com a temperatura exacta que lhe aliviaria as pernas já um tanto fatigados do seu fado. Não tendo parado sequer quando teve sede e passou a vau um regato manso já não ali perto. Saciou-se ao tocar com todo o cuidado o musgo da pedra que ficava no lado da sombra. Essa frescura preenche-o e foi bom.
Libertou-se de tudo quanto trazia e assim, despido de certezas, banhou-se na dúvida, mergulhando na sua profundeza, até ao limite onde os peixes e todos os outros animais aí já não precisam dos olhos, contemplando cada coisa, pelo que era cada coisa e examinando também todas as outras coisas, que eram tão só, todas as outras coisas, permitiu-se notar o que cada coisa tinha para lhe dizer e o que cada coisa tinha a dizer a todas as outras coisas e a ouvir de cada coisa o que essa coisa não dizia, pois era esse o momento em que mais diziam. Confessando-se no seu silêncio. Na ausência. Nesse ponto, que não era o centro, nem a periferia, nem o que fica entre o centro e a periferia e também o que fica para além do centro e da periferia, nesse todo, confundia-se, camuflava-se desse todo, de tal forma, que um observador ocasional, apenas veria uma pedra, com musgo, ligeiramente húmido no lado oposto ao do que o sol alumiava e se fosse mais atento, teria notado que a pedra se dividia em duas partes, nada iguais, e com temperaturas e tonalidades também diferentes e que, se se observasse com mais atenção ainda o chão à sua volta, veria uma sombra imperceptívelmente maior do que a sombra que o sol provocava da pedra, só. Desse modo, o não visto, o que não se deixava ver, nem observar, nada vendo nem olhando, era o todo que o observador via.
Quando, no ombro naquele que se não vislumbrava, um grande pássaro pousar, que para uns será uma enorme águia-real, para outros, um mocho diurno, porque os há, diurnos, e se por acaso, o sol já tivesse desenhado uma sombra mais comprida no chão a partir da pedra, essa ave poderia ser um morcego, que levantará o seu voou logo de seguida, no caminho da noite. O que não se vislumbra veria uma Fénix e esta seria a sua irmã, que de morta nas cinzas se reconstruía na união dessa matéria inerte e liberta, já fria, renascendo, tornando-se a fénix e ele um só, por todo o tempo que durasse esse dia, que só a noite poderia extinguir.

Vogava. Despido, ainda conserva numa mão o passado e na outra, o futuro. Quando achar oportuno, unirá as duas e terá o presente nas suas mãos. Unidas. Os dedos e a carne. E o tempo.

LAM; Contos in Findos, Junho 2015, Edições Afa-Zer



quinta-feira, 18 de junho de 2015

II



No caminho está só
Aquilo que é
A sombra do que não é


LAM, Haiku, Junho de 2015


domingo, 14 de junho de 2015

As a Silent Bruit

Enjoy!

As a Silent Bruit – Tracklist

  1. Jungle Talk - Jungle Birdsong – Echoes of Nature: The Natural Sounds of the Wilderness - Delta Distribution; 1993
  2. A Produce – An Indian Surface - Trance Port: Trance Port Special Editions ‎– tpse-cd-111; 2005
  3. Cello + Laptop ‎– La Souriante Madame Beudet - Parallel Paths: Envelope Collective ‎– ENVCD03; 2012
  4. Arno Peeters – Aud Entity (Extended Version) – Aeroson: Mille Plateaux ‎– mp38; 1996
  5. Hilary Hahn & Hauschka – Stillness – Silfra: Deutsche Grammophon ‎– 00289 479 0303, 2012
  6. Turkey Talk - Jungle Talk: Echoes of Nature: The Natural Sounds of the Wilderness – Delta Distribuition, 1993
  7. Max Richter – Blue Notebooks - The Blue Notebooks: 130701 ‎– CD13-04, 2004
  8. Stephan Mathieu ‎– Akira Rabelais […] Edit - Full Swing Edits: Orthlorng Musork ‎– ORTH 05, 2001
  9. Echoes of Nature – Low Tide – Disc 2 - Echoes of Nature: The Natural Sounds of the Wilderness Delta Distribuition, 1993
  10. Arovane – Nostalghia I – Eleeve - Not On Label (Arovane Self-Released) ‎– none, 2015
  11. John Cage – In a Landscape by Alexei Lubimov ‎– Der Bote; ECM New Series ‎– 461 812-2, 2002
  12. Pink Floyd – Is There Anybody Out There? – The Wall (luMar edit); PC2 36183, 36183 US, 1979




quinta-feira, 11 de junho de 2015

A re-banho


wolf/lamb by swantelope at deviantart

Tu,
Que carneiro te pensas
E como carneiro te ages,
Segues
O carreiro que todos
Os carneiros
Seguem
Confiando que é
De carneiro
o carreiro
que seguem
Que tanto
se abstraem do bafo do
Lobo
E no lodo caem,
Na boca
Do lobo.



LAM; o Paradigma do Pombo Molhado; Edições Afa-Zer, 2015


[ ! ]


Thinking Ape by Sean Keil

“Confiar em quem?
Confiar no quê?
Eis a dúvida”


LAM; um dia depois, Junho de 2015



domingo, 24 de maio de 2015

Em leituras II



“Escrever é tentar saber o que escreveríamos se escrevêssemos”


“Não sei se ainda estás em Caracas, já de regresso a Barcelona ou talvez em algum ponto aéreo entre as duas, escrevi hoje a Villa-Matas. Por cá, já todos lemos a notícia de Rómulo Gallegos, a qual incluía, por alguma razão, apenas comentários teus. O mais interessante: quatro a um não é a mesma coisa que três a dois. Enfim, imagino que já andarás mais calmo sem a carga desse concurso.
Estive a ler Bartleby e Companhia, escrevi-lhe, fazendo referência à sua obra que fala da pulsão negativa dos escritores, da sua atracção pelo nada: escritores que deixaram de escrever. Se Bartleby é a personagem literária que representa o escritor do Não, aquele que preferia não fazê-lo (ou já não o fazer), quem representa então o escritor do Sim? Que personagem literária poderia exemplificar os escritores que sim, preferiam fazê-lo? Passa-me pela cabeça que é nessa batalha que me encontro actualmente. À procura de origens literárias, estou, na realidade, à procura de momentos do Sim, dirijo-me com cautela para o extremo oposto de todos os Bartlebys. Espero não te maçar demasiado com estas insignificâncias.”


“Já sem qualquer brisa, Vladimir viu apenas o peso de uma gota de chuva, brilhando luxuosamente, resplandecendo como um metal liquido, arqueava a ponta de uma pequena folha verde. Silêncio. Viu como este glóbulo prateado deslizava lentamente através da veia central da folha. Quietude. E depois, no mesmo segundo que mais pareceu uma fenda no tempo, viu como a majestosa gota caiu, aliviando a folha daquele tremendo peso e fazendo-a regressar, em rítmicas oscilações, à sua posição original.”


“De nada, Eduardo. Faça-me só um favor, sim? Deixe-se de parvoíces, não faça esse tipo de perguntas estéreis. Não há respostas válidas para a pergunta sobre a razão pela qual alguém se torna escritor e, ainda que as houvesse, seria a mesma coisa, não interessam a ninguém.”


“”Escrever para que me leiam, creio recordar que disse, em algum momento, Oscar Wilde, embora talvez tenha sido André Gide – tendo a confundi-los e para os meus fins pouco importa. Mas monsieur Wilde, objectar-lhe-ia se eu pudesse, porque quer você que o leiam? E o senhor Wilde, audaz, monumental, com o seu génio irónico sempre afinado, talvez me respondesse que quer que o leiam para, assim, poder continuar a escrever.”


Eduardo Halfon: “O Anjo Literário”, Cavalo de Ferro




sexta-feira, 22 de maio de 2015

I



Quanto possuo
suspende
o sonho

LAM; quase Haiku: Maio 2015



5

segunda-feira, 18 de maio de 2015

“O Osso das Palavras” (excerto)


Foto de LAM (Avenida da Praia - Barreiro)


Há uma palavra obscura no interior da palavra obscura.
Há um pensamento remoto, remotamente pensado.
Há um temperamento que não tem tempo, nem momento.
Há um momento que é único, irrepetivelmente continuado e único.
Há um todo que todo junto é um deserto de nada, que nada, no deserto de nada.
Há um pouco de tudo isso e um pouco de tudo isto e um pouco de tudo, isto e aquilo que não é nada.
Há repetidamente um nada que é repetido, repetidamente em nada, porque nada num oceano vazio, de nada.
Há e não há, mas também há o que não existe e sabemos que há porque existe, quando existe e já não há.
De todo o todo a nada se refere, quando nada, nem nada, nem significado, porque nada, nesse lodo da consciência oca, de vazia, de sentido oco e vazio, no vazio oco do sentido sem sentido.
As paredes batem porque são paredes e batem porque as ouves, quando batem e batem repetidamente.
Há o silêncio ensurdecedor do silêncio vazio e oco, infinitamente. Oco.
Há o sentimento desse vazio absoluto. Absolutamente vazio e oco.
….
LAM; “O Osso das Palavras” (excerto) in “O Pombo Molhado”; Edições Afa-Zer



domingo, 17 de maio de 2015

Quem; Como; Porquê; ...


a man with wilted flowers by Bansky

Capitulo primeiro
O acordar é um exercício demorado que requer uma atenção focada. Objectiva. Nele, é uma coisa que acontece em sobressaltos. Como subir uma escada, onde não se sabe onde se começa nem onde se vai parar. Apenas se tem a consciência de que se sobe. Que se tem de subir, a maioria das vezes contrariando esse impulso natural, fechando os olhos e obliterando os sentidos, principalmente quando o soporífero está contido numa garrafa, sem rolha, mesmo ao lado do nariz, salientando o ambiente em que se adormeceu, ou se entrou em coma, ou se anestesiou, quase até ao vómito que foi precisamente o que o obrigou a um salto repentino da enxerga e a uma corrida para a casa de banho à procura de um chuveiro que lhe permitisse a limpeza e a erradicação dos odores e dos humores. Uma íngreme exercício a que se ia especializando em cada manhã. Repetidamente à mesma hora. Fatídico. Preciso. Tal qual um relógio suíço.
Todas as noites se deitava com a fé que seria no dia seguinte que teria inicio uma nova e sóbria vida. Todas as noites, estas sem as intermitências das manhãs agoniadas, umas piores que as outras, que essa novel figura, seria, enfim, um homem novo, passe a redundância. Debaixo da água abundante e gelada, tomava consciência das suas promessas vãs até que o fígado, fatigado, desligasse definitivamente. Nessa altura, então, …
Aos poucos e com o vigor da água que inundava todo o chão e paredes até ao tecto da casa de banho, ia adivinhando que horas seriam, sempre a mesma, observando a sombra da janela no espelho, que reflectia um rosto desconhecido, de olhos encovados e vagamente amarelos a encimar um nariz arroxeado e uma barba que nem era branca, nem preta, mas também amarela à volta dos lábios gretados e lívidos. Ao álcool em abundância, somava os cigarros acesos uns nos outros que, com algum café e ocasionais fritos, consistindo esta amalgama a que dificilmente poderia dar-se o nome de alimentação, numa dieta rica em lixo. Quando lhe lembravam da merda de vida que levava, retorquía com a mesma verborreia, com que o abordavam, quem quer que fosse, social e hierarquicamente falando, dizendo que mais não era do que a merda que ele próprio frequentava. Nessa altura, encolhiam os ombros e apenas o toleravam, porque no meio de toda a pestilência e mau feitio, sabia como ninguém encontrar qualquer agulha num qualquer palheiro, mesmo que este se encontrasse nos antípodas, ou aquela, na taberna da esquina, espetada num pastel de bacalhau, que depois de encontrada, pedia tinto, que bebia de uma só vez, directamente do jarro, para que não se dessem ao trabalho de ter lavar os seus copos, já que o jarro era sempre o mesmo e tinha o seu nome gravado, numa dentada furiosa no bordo, após uma altercação de circunstância. É claro que o outro partiu o nariz no balcão, pelo que deixou de ser cliente da espelunca.
- Tu espantas-me os fregueses todos!
- E para que precisas tu deles se eu sou o melhor? O único que te permite pagares a renda desta baiuca.
Mas aquela manhã era diferente e, ainda não o sabendo, seria a última, ou a primeira. Iria depender dos astros. Ou de si mesmo.

As mudanças acontecem apenas de duas formas. Imperceptíveis ou inesperadas. As que lhe calhavam em sorte, pertenciam todas à segunda categoria.

LAM; "Quem; Como; Porquê; ...", excerto; Edições Afa-Zer, 2015


quarta-feira, 13 de maio de 2015

[sem titulo]

Photo © Henri Cartier-Bresson - Magnum Photos

Dou corpo à solidão, pois é dela que me alimento todos os dias. Percorro todas as avenidas, ruas, becos e pátios da memória à procura. De algo. Ando sempre à procura. De algo. Por vezes, sento-me num banco, ou num qualquer recanto mais sombrio, porque me doem os pés. Ou então é a alma. A alma e os pés são intrínsecos. Seminalmente juntos na tarefa da procura. Origem e destino. Quando me encontro sentado, pés e alma vogam aflitos. Não se encontram. O seu contacto perde-se por meio do corpo em descanso. Se me deito, os pontos cardeais esbatem-se de tal forma, que tal como uma qualquer gota de tinta clara se confunde na abundante água onde se escoa. Dilui-se. O corpo já não é, então. Também aí, a solidão deixa de ter sentido. Pausadamente, a alma se vai erguendo e, na distância do seu olhar distante, me observa, com todos os seus olhos de Hidra, me toca com todas as suas mãos de Xiva, me envolve nos seus labirintos de Dédalo, me tortura nas amarguras de Tântalo. Me abandona comigo. Só. Nesse momento cerro os olhos para me confundir no destino. Nada transporto comigo para que as alfândegas não me macem com perguntas de circunstância e me questionem sobre o trajecto. Senão, viro as costas e caminho nessa linha que não é de uns nem é de outros. É. Apenas. Caminho. Só. Com a esperança que os meus braços não me atraiçoem pendendo mais para um lado que para o centro de mim, que me equilibro no percurso dessa linha, que não é de ninguém, mas é onde vou. Só. O meu percurso. Na minha senda.

Se um rio sabe que vogo, envia-me um pássaro, que percorre searas, como quem percorre seios femininos que alimentam os que têm fome. Dão de beber a quem tem sede. Só. Com o olhar. Não lhes é permitido que repousem sem que anunciem o rio que os envia. Não podem descansar, por mais longínqua que seja a viagem, o voo, o destino. Quando vislumbro uma asa ou ouço um longo grito, não sei de onde vem. Ainda. Por isso continuo nessa linha imaginada, de ninguém. Só, me detenho no rio que cresce. Primeiro em pequenas manchas de espuma branca na areia diurna. Quando arrefece e a noite se afigura, as vagas agigantam-se como que me envolvendo. Impedindo-me assim de adormecer. Porque tenho frio. Porque o som me atordoa. Porque o grito da ave se sufoca a si mesmo. Porque o escuro me impede. Porque não quero. Adormecer. Só. Porque a areia me dói nos pés e a alma se afoga no pranto marítimo da praia deserta. Imensamente deserta. Só. Me basto. Só. Me quero. Só. Espero então que a manhã se debruce no horizonte. Estenda o seu manto diáfano e dê forma às coisas. Que as torne legíveis. Que lhes dê cor e luz e sombra e penumbra e alimente as árvores onde me sento por debaixo, protegido do olhar dos homens que caminham sós, também eles por caminhos que só eles sabem, ou querem, ou ignoram, ou tanto lhes faz. Talvez não se importem. Talvez apenas queiram ir para onde os pés e a alma os levam. Para lugar nenhum, que é afinal todos os lugares, esse local onde todas as almas solitárias se encontram. Sós. Cegas. Mudas. Quedas.

Hoje, é um dia que terá tido um início. Terá um fim, por certo. Todavia, deitei fora o relógio. O tempo já não tem importância. Teremos sempre o Livro de Job para ler.


LAM; “Há dias assim. Apenas dias.” In “O Pombo Molhado”; Edições Afa-Zer, 2015 


domingo, 8 de março de 2015

Há dias que é isso mesmo. Nada Mais. Dias!

Foto do autor do Texto "Há Dias que é isso mesmo. Nada Mais. Dias!"


Sei que o inverno é de passagem, que o inferno é miragem
Sei que o tempo é destino, como o alimento é intestino
Sei que o vento é a sublimação do ar, frio, quente, frio, quente,
Sei, que afinal não sei que nada do que disse tem importância,

Só o silêncio ouve.

Há coisas que não importam, outras que têm importância e outras ainda que,
De inúteis são isso mesmo. Inúteis. Sem importância. 

Há coisas que quero saber. Têm nome e o nome 
das coisas dá-lhes a importância que merecem, porque 
inúteis. Coisas sem importância. Outras coisas, 
outras.

E há esse desvio sempre,
Do que que se quer dizer, do que é dito e do que ficou por dizer, porque não ouvido,
Sentido, (não)
Sofrido,

(... o silêncio, ...)

No arrumo das prateleiras bafientas, dos livros com pó e saber, há os que reservam a surpresa. Essa surpresa, sempre.

Lê-se (recorda-se) as palavras diapasão de um dia, outro. Por vezes,
Bem, por vezes paramos no meio
Das frases, dos pensamentos memória,
Das emoções da memória de repente vista com os olhos, outros.
Dos sentidos, os mesmos de sempre, re-descobertos agora, que
Pensamos para sempre, esse
Sempre que nos persegue em frente, como
Sombra, mesmo que o sol nos fira, de frente
Os olhos, com que te-vimos (ti-vemos) uma vez. Única e irrepetivelmente única e para sempre, única.

Quero a mágoa dos dedos doridos na ferida aberta
O sangue esperma que gera os filhos-dor, que nos sangram a memória que não
Queremos, … e depois, …
Há sempre o pombo preto, qual corvo de bico branco. Alvo-branco que fere o olho limite
Do sentido. De pé. De joelhos. Deitado. Defunto.
Do fundo.

(todas as palavras são filhos de quem somos 
pais defuntos. Do fundo 
do mais que há 
em nós)

Re-lê-mo. Re-dimo-mo. Pre-siso-te agora que sou de carne que
é viva na memória pro-funda que teima, re-expira e re-inspira-se e re-nasce-se e re-nova-se 
e re-solve-se e di-solve-se, no diluir dos meus(únicos i-repetidos) dias.

Quero … traço ponto traço ponto ponto. Ponto!

Re-tiro o que disse e me repito até que que a exaustão nos dissolva. 
Me re-solva.
Nada mais quero. 
Quero!
Resto-me na re-evolução de tudo que me compõe. 
Que me, de-compõe.



LAM;! In “O Pombo Molhado”; Edições Afa-Zer Março de 2015