O acordar é um exercício demorado que requer uma atenção
focada. Objectiva. Nele, é uma coisa que acontece em sobressaltos.
Como subir uma escada, onde não se sabe onde se começa nem onde se vai parar.
Apenas se tem a consciência de que se sobe. Que se tem de subir, a maioria das
vezes contrariando esse impulso natural, fechando os olhos e obliterando os
sentidos, principalmente quando o soporífero está contido numa garrafa, sem
rolha, mesmo ao lado do nariz, salientando o ambiente em que se adormeceu, ou
se entrou em coma, ou se anestesiou, quase até ao vómito que foi precisamente o
que o obrigou a um salto repentino da enxerga e a uma corrida para a casa de
banho à procura de um chuveiro que lhe permitisse a limpeza e a erradicação dos
odores e dos humores. Uma íngreme exercício a que se ia especializando em cada manhã. Repetidamente à mesma hora. Fatídico. Preciso. Tal qual um relógio suíço.
Todas as noites se deitava com a fé que seria no dia seguinte que
teria inicio uma nova e sóbria vida. Todas as noites, estas sem as
intermitências das manhãs agoniadas, umas piores que as outras, que essa novel
figura, seria, enfim, um homem novo, passe a redundância. Debaixo da água
abundante e gelada, tomava consciência das suas promessas vãs até que o fígado,
fatigado, desligasse definitivamente. Nessa altura, então, …
Aos poucos e com o vigor da água que inundava todo o chão e paredes
até ao tecto da casa de banho, ia adivinhando que horas seriam, sempre a mesma,
observando a sombra da janela no espelho, que reflectia um rosto desconhecido,
de olhos encovados e vagamente amarelos a encimar um nariz arroxeado e uma
barba que nem era branca, nem preta, mas também amarela à volta dos lábios
gretados e lívidos. Ao álcool em abundância, somava os cigarros acesos uns nos
outros que, com algum café e ocasionais fritos, consistindo esta amalgama a que
dificilmente poderia dar-se o nome de alimentação, numa dieta rica em lixo.
Quando lhe lembravam da merda de vida que levava, retorquía com a mesma
verborreia, com que o abordavam, quem quer que fosse, social e hierarquicamente
falando, dizendo que mais não era do que a merda que ele próprio frequentava.
Nessa altura, encolhiam os ombros e apenas o toleravam, porque no meio de toda
a pestilência e mau feitio, sabia como ninguém encontrar qualquer agulha num qualquer
palheiro, mesmo que este se encontrasse nos antípodas, ou aquela, na taberna da
esquina, espetada num pastel de bacalhau, que depois de encontrada, pedia tinto, que bebia de uma só vez, directamente do jarro, para que não se dessem
ao trabalho de ter lavar os seus copos, já que o jarro era sempre o mesmo e
tinha o seu nome gravado, numa dentada furiosa no bordo, após uma altercação de
circunstância. É claro que o outro partiu o nariz no balcão, pelo que deixou de
ser cliente da espelunca.
- Tu espantas-me os fregueses todos!
- E para que precisas tu deles se eu sou o melhor? O único que te permite
pagares a renda desta baiuca.
Mas aquela manhã era diferente e, ainda não o sabendo, seria a última,
ou a primeira. Iria depender dos astros. Ou de si mesmo.
As mudanças acontecem apenas de duas formas. Imperceptíveis ou
inesperadas. As que lhe calhavam em sorte, pertenciam todas à segunda categoria.
LAM; "Quem; Como; Porquê; ...", excerto; Edições Afa-Zer, 2015
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