sexta-feira, 18 de maio de 2012

Um Dia no Paraíso

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Boa tarde, o que vai desejar?
­   Para entrada, traga-me por favor, Teixeira de Pascoaes, “Canção da Névoa”
­   No original?
­   Sim, por favor, o de Sombras, edição de autor
­   E para acompanhar a entrada, tem algo em mente?
­   Oh sim, desculpe-me a distracção, já degustava. Pode ser, "20 de Abril" de Bosques de mi Mente.
­   Em MP3, ou tem preferência em outro formato?
­   Pode ser em MP3, tem um bitrate bastante aceitável, obrigado.
­   É tudo quanto deseja por agora, ou posso ir preparando o prato principal?
­   O que tem, assim, de mais suculento, de substancial? Pode ser demorado, tenho tempo.
­   Sempre pode consultar a carta, mas recomendo o Fausto, está no original.
­   De Goethe?
­   Sim, temos a primeira parte de 1806 e a segunda de 1832.
­   Verifico que o tem completo. Que maravilha. Fico-me hoje pela primeira parte.
­   E gostaria de o acompanhar com algo de especial?
­   Sim, uma coisa contemporânea, mesmo muito recente. The Blue Nature of Everyday” de Leonardo Rosado.
­   FLAC, MP3?
­   MP3, satisfaz-me o background, quanto baste.
­   Temos também umas sobremesas óptimas.
­   Ah sim? Estou curioso, …
­   Para hoje, está recomendado como final deste prato principal, William Blake; “Songs of Innocence and of Experience Showing the Two Contrary States of the Human Soul”, não é o original, mas é um trabalho muito cuidado, com ilustrações do autor, também.
­   Realmente um final divino.
­   Para acompanhar, …
­   Nada, por favor, nada. O silêncio basta-me. Muito obrigado
­   Espero que tudo esteja do seu agrado.
­   Está com certeza. Não podia estar melhor.
­   Com sua licença, volto já com o seu pedido.

LAM; “Um Dia no Paraíso” em 18-05-2012


sábado, 12 de maio de 2012

Nada



Não tenho palavras. Procuro nos bolsos o resto dos dias e não me sobram vocábulos. Já não construo frases. Aqueles blocos coloridos que numa alcântara febrilmente erigida, nos permitem transpor o nosso desejo de permanecer.  Essa ambivalência do nada, do quase nada, que subjaz ao pensamento. O corpo inerme, vai. Mas a vontade é mantida prisioneira do chão que a enraíza. Não, essa metáfrase que subjuga. Não. Não e não. Nada. A vida já não pertence ao corpo nem à sintaxe. O texto está morto e frio. Há que deitá-lo à terra que o viu quase nascer, aquando um quase nada. Um quase coisa nenhuma, mas ainda coisa e nenhuma. A coisa em si. Copos. Corpos com liquido dentro, que o tempo se vai encarregando de ir sorvendo em pequenos golos, a intervalos cada vez mais diminutos. Tempo. Uma unidade para-matemática para designar o espaço entre. Outros corpos. Outros tempos. Viajando se encontram as razões da existência, olhando bem no fundo dos olhos dos outros. É sempre um outro que vai e é sempre estoutro que fica, mesmo indo com o outro. Um que não é igual. O outro que permanece. A dicotomia da azáfama de nada fazer. De deixar estar. De ser e de não ser. Para-fazer. Palavra encontrada ao acaso no caminho que não se percorre, mas se alonga no olhar. Uma pedra aqui. Uma árvore ali. Por fim um viandante. Ninguém. Um percurso deserto. Para onde vão os sentidos fica a esperança, vã, como vãs são todas as coisas no decurso do tempo. A pouco e pouco me vou despindo, até que só me resto eu. E nem o eu se resolve. Porque a nada me sou e a nada me entrego. Fechados os olhos, o mundo já não existe.

LAM; Escritos (in)adiados, 11-05-2012