terça-feira, 24 de abril de 2012

Quantos mundos? Quantos Homens?


 
Nesta Terra vivem Homens. Vivem pássaros, peixes e baleias.
Também vivem árvores e vive um oceano imenso.
 Vivem as pedras e os caminhos que as ladeiam.
Vivem alcateias de lobos e rebanhos. Cavalos selvagens, gafanhotos, pulgas e moscas.
Esta Terra vive de si. Autoalimenta-se e reconstrói-se a cada instante. Em segundos, em anos, em séculos.
Esta Terra há-de viver depois dos homens.
Mesmo quando esta Terra tiver morrido, ainda viverá no coração dos Homens.
Nessa altura, não haverá nem homens nem terra. Nessa altura, nem as estrelas serão. Nessa altura, tudo o que existir, é não existência.
Então, um pensamento, que fora de si, dirá:

- Faça-se Luz!

Earth by Jack Hertz

sábado, 21 de abril de 2012

O Labirinto I



A porta havia-se fechado delicadamente. A sua memória recuou para um tempo simultâneo em que aquela porta se fechou consigo lá dentro, numa sobreposição de instantâneos suspensos no tempo, abertos em todos os sentidos, num filme sem-fim. De todas as portas que ouviu, nenhuma apresentava aquela subtileza. Foi um encostar ameno em que o trinco timidamente se libertou, ficando no ar um silêncio de casa vazia, de onde todos os habitantes já tinham saído desta vida mas ainda permaneciam sentados, ou deitados, nos respectivos cantos. Foi cerimoniosamente que aconteceu. Um evento. Mais do que um acaso, uma intensão de deixar ainda mais vazio aquele espaço já de si ausente de qualquer existência. Às imagens de uma porta que se fecha infinitamente na sua memória, junta-se o pingo cadente de uma gota de água, monotonamente persistente, metálica e líquida, prolongando-se no eco de si própria, como uma melodia minimalista, repetitiva e auto-regeneradora, em todos os cambiantes audíveis. O som batia nas paredes, nas janelas, nos móveis e em si próprio, que os duplicava inconscientemente na cabeça, onde camadas de sons de pingos cadentes e de portas a fecharem, se intercalavam com as imagens desses pingos e dessas portas. Sempre o mesmo pingo e nunca o mesmo. Sempre a mesma porta e nunca a mesma, porque o tempo, começava então a pensar para além do presente, não se retia em nenhuma direcção. Era o mesmo tempo em todo o lado, tal como era o mesmo pingo e a mesma porta, sem nunca serem os mesmos elementos, pingo e porta. Queria ser lúcido, mas tudo o que via e ouvia era aquela porta no passado e aquele pingo no presente. O seu pensamento vogava num limbo de sons voláteis como o fogo. Queimava. Deixava de fora a realidade a que se queria ancorar e que ao mesmo tempo, sempre que a aflorava, o amordaçava. O tolhia. Estava prisioneiro daquele instante, como se toda uma vida se resumisse a um clique, simples, de baixa frequência, como a sirene de um navio que se deixa de ouvir com os ouvidos e é o corpo todo o receptor sonoro. Batia-lhe no peito, ferindo-lhe os pulmões, o coração, o estômago, os intestinos, numa dor que se avolumava numa nuvem ao seu redor, e o pingo que não parava, e ele sem forças para se levantar, para gritar. A angústia ia tomando corpo numa náusea absurda. Apetecia-lhe vomitar, mas eram os olhos fechados que teimavam em soltar grossas e longas lágrimas que o queimavam nas mãos. O mundo abria-se então num abismo infindo que excedia a razão.

LAM

quinta-feira, 19 de abril de 2012

A memória das palavras



Das palavras saem gumes afiados que deixam riscos de sangue em quem passa.
Nos passeios labirínticos da vida, sementes multiformes, vocábulos soltos, simples argumentos de inutilidade.
Ramos altos de acácias desejam o princípio do céu sem deixarem, nunca, a terra onde se fixaram. Das raízes, disse-se. Do chão que as prende, sabe-se.
Temos dois braços, cinco dedos em duas mãos. São verbo, substantivo e sujeito. Dos pés, os passos que voltam sempre ao mesmo lugar. Distante. Daqui. De sempre e de nunca. Agora.
Labiríntico desejo de partilha, segurando com a força do hábito o saber da perda, a cada instante, infinitamente distante. Infinitamente longe de qualquer gesto. Infinitamente gasto.
Parto de mim. Um parto que é nascer e ir. Chegar e voltar no mesmo tempo. Uma viagem que não tem começo nem acaba. Nunca. Palavra definida pela sua incompletude. Trajecto já acabado quando ainda sequer começou.
Porque não voam as árvores? Porque se beiram nos caminhos, estáticas, desejando o céu, só porque, de altas, não vêem o chão em que pisam, com a sua sombra dilatada pelo sol?

- Tem uma árvore, sombra de noite?

Migram os pássaros, as nuvens, os homens e as suas fronteiras. Migram as marés, os barcos e os peixes que neles viajam, dentro e fora. Dentro, porque é a sua natureza de ser peixe. Fora porque é da natureza do homem viver do seu infortúnio. Mas na superfície da vida, de todas as vidas, nada acontece.
Quando um beijo nasce, é já um gémeo de outro. Quando um beijo morre é sinal de não haver nunca nascido. Agora não é um tempo. Agora é um lugar. Intemporal e seguro, como seguras são todas as palavras caladas. Estas não sangram por fora. Estas são lugares escondidos pela língua, pelos dentes, pela boca fechada. Mas elas crescem, surdas e infindas, até que o grito as solte. Depois já é tarde de mais.
Fecham-se os caminhos. Caem as árvores. Fogem os pássaros e os peixes, e até as marés se aquietam, olhando de soslaio a lua que as governa.
A lua, oh a lua. Esse sol noctívago que desassombra os amantes fugidos às leis que os prendem. De nenhum lugar. Para lugar nenhum.

- Sabias que as árvores dançam, nocturnas, nos caminhos que cercam? 

LAM

sem titulo


As palavras doces do vento, o vento certo das madrugadas, o frio das noites sem sono e tu ali, a meu lado. O gesto que seria necessário para abrir uma porta e fecha-la e dizer-te o segredo dos pássaros, num aceno de luar, enquanto dormes. Estou a teu lado. Um lado que só existe nos amantes. O lado de dentro. A suave música da noite, polvilhada de estrelas, embala-te. O teu sono é sereno, de criança, adormecida nos meus braços. Tudo o resto é silêncio. O tempo prolonga-se no meu olhar para além da janela. As sombras incomuns, que todas as noites nos visitam quedam-se junto ao parapeito. Desta vista não há árvores, mas os seus rumores sobressaem na noite quente. O calor do teu corpo veste o meu corpo, ainda frio pelo rumor da alva. O meu passeio nocturno, solitário, está a um abraço do fim. Estás aqui a meu lado. É em ti que me refugio, é em ti que me deito, é em ti que me amanheço.

LAM