quinta-feira, 20 de novembro de 2014

L




Um dia
vais
saber
do mundo
onde
eu
habito.


LAM in “ O Pombo Molhado”; edições “Afa zer” 2014

[ ... ]



Deixem que me sonhe, ...


LAM in “ O Pombo Molhado”; edições “Afa zer” 2014

XLIX



XLIX

E a serenidade serve-se
quente
ao pequeno-almoço
depois
de toda fúria os corpos
regressam
ao seu normal estado de vigia
como se a vida fosse
servida em copos
pequenos
pequenas doses
Grande veneno
queria
a incerteza
sem a fuga
Queria
o verbo não
o adjectivo.
Queriam
o sonho sempre
adiado
Não fosse
a dúvida

Incólumes
no passo
de nuvem a sombra
do que resta
Nada!

Uma sombra de coisa
Nenhuma.



LAM in “ O Pombo Molhado”; edições “Afa zer” 2014

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Angélica, ...




Ser impossível é ser nada. É ter a oportunidade de uma noite em branco para se rever. Contar os pontos de luz no tecto filtrados pela persiana do quarto sempre que um carro passa na rua. Ver-se acordado, é um exercício só de alguns. É não ter relógio, nem manhãs, nem segredos nocturnos. É não ter medo que o futuro seja ainda uma porta por abrir. Ser impossível, é ter na mão o desejo de te compor. Fazer de ti uma sinfonia. Mais simples ainda. Um quarteto de cordas em que toco o teu corpo violoncelo, modelo nas minhas mãos de marinheiro, de muitas noites de vigia, muitas noites de sol no verão árctico. Muitas noites brancas e em branco. Muitas noites contigo no pensamento, no coração e nas mãos cerradas dentro dos bolsos, naquele balanço marítimo. Não tenho corpo. Ouço, no navio, os cânticos de sereia dos marinheiros de outrora. Quisera eu amarrar-me ao mastro para que não me arrastasses no teu lamento, no teu encanto. Nada disso se passa no tecto do meu quarto. São as vozes nocturnas que passeiam na rua que trazem o teu lembrar. O teu sono agitado. O teu grito nocturno. O teu suor, as tuas lágrimas que eu beijo dentro do teu sonho. Abraças-me com força e pedes-me para te esconder, para que não te levem para onde não queres estar. Agora estás tranquila, mas aguardo o teu suspiro primeiro, depois um soluço, a seguir o grito. É sempre no grito que te levantas e me olhas como a um estranho, mas mesmo assim me agarras como se eu fosse a última coisa do mundo. Por onde andaste para chegares assim tão condenada? As tuas feridas sangram. Vejo-as reflectidas no lençol. Tem sido assim desde que te resgatei naquele porto do norte onde andavas à deriva. Desde esse dia, sou o teu médico, o teu confessor, o teu amante, o teu abrigo. Desde esse dia que me olhas dessa maneira no sonho. Depois acordas e ficas a soluçar no meu peito. Depois de acordares afago-te o cabelo e te encosto a mim, para que adormeças de novo, para de novo acordares nesse grito lancinante de gaivota ferida.
Há muito que não durmo de noite para te proteger. Sinto que no quarto há outro animal estranho que se enrola em nós e nos deixa estranhamente calmos à espera do perigo. Outro carro passa na rua. Agora o desenho da janela semicerrada percorreu o meu corpo despido e não me reconheci no espelho do quarto. Desde que chegaste que sou outro em mim. Um estranho dentro de outro estranho. Passei de marinheiro a vagabundo de almas. As profissões não são diferentes, só que na nova nunca sei quando vou dormir. Penso em sair, mas o gato olha-me da porta do quarto. É um gato que também não dorme de noite. É um gato consciência que me obriga a ficar de pé, indeciso. O gato não sai da porta, eu não saio da janela, tu não sais da cama, onde agora dormes. Ao menos tu consegues dormir, embora aos soluços, com lágrimas e com sonhos agitados, que sei pela tua mão que não se aquieta. Tento sair do quarto mas o gato não se mexe. Ficamos frente a frente a olharmo-nos nos olhos. O gato sabe que tu vais gritar de novo e quer-me aqui. Afinal nada precisa de mim, há um gato que te vela.

Gosto deste jogo da insónia. Há já tantas noites sem dormir. Nunca me pensei assim, embora fosso meu mister guardar o navio quando o dia se ia até que voltava, e me encontrava no sonho desperto para si. Por isso me encontraste. Agora que vejo nos teus olhos de criança perdida a razão por me teres encontrado, quero que saibas o meu nome. 

LAM; Os passos encontrados; algures.