sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

A Apresentação


São três horas da manhã e a apresentação ainda não está pronta. Melhor dizendo ainda não está começada. Tenho todos os dados, todos os valores e fotos. Os gráficos estão prontos, já só falta dar ordem àquela informação toda e fazer o Power Point. Dot.

A janela está aberta, os mosquitos entram e só não me mordem porque estou envolto no perfume do Cohiba. Já é o terceiro depois do jantar.

Apetece-me mandar aquele monte de médicos para os confins do inferno. Eles dão-me o sustento, mas também me sugam o sangue. Apeteceu-me por o braço fora da janela e esperar pela próxima melga.

Para tudo há uma desculpa, ou um culpado. Aqui o culpado sou eu. A desculpa és tu. Sou eu o culpado porque te convidei para jantar, tu és a desculpa porque à última da hora decidiste aceitar, mandando o Artur às urtigas. (Ainda me rio com esta).

Eu sabia que se viesses, não ia fazer a digestão. Tens esse dom. O de provocar azia num estômago vazio.

Como sempre, chamaste a atenção de toda a gente quando entraste no restaurante. Um vestido de cavas até à cintura, sem peito nem costas e um estola a tiracolo. Mas porque é que eu ainda te ligo, pergunto-me. Assim que te sentaste, ainda o empregado não tinha ajustado a cadeira ao teu assento e já pedias um Champagne de Vignerons. A 15º, foste clara. E um Poule faisane rôtie au beurre de combawa, sem que te tivessem trazido a lista. Oi Clara, estamos no jardim do CCB, alô, aqui terra. Escuto. Qual quê qual nada. Fiquei com pena do Artur, deveras que fiquei e ainda mais quando o Chef, ele mesmo veio pedir meças contigo. Mas reconheço que és uma belíssima cozinheira, aliás fiquei feito parvo na mesa, sozinho enquanto davas ordens na cozinha e eu com um Raposeira, brut à minha frente. Fui bebendo alternando com umas gambas e umas Cigarrilhas Backwoods Wild Rum, aliás iam fazer uma boa mistura com o Raposeira. Que jantar este. Eu que esperava uma lamechice qualquer apanho com uma bipolar em fase mania. Irra. O empregado foi chamar-me. Na mesa, para além de ti, está um faisão ainda com penas e um monte de coisas que se eu as descrever vomito. Mantenho o Brut Raposeira, pelo sim pelo não. Num passe de mágica, sai a penugem e um prato com todo o requinte apareceu à minha frente. Tenho que reconhecer que conheço pessoas influentes. O chef veio assistir à primeira garfada, dada por ti como é óbvio. Abstenho-me de comentar as mesuras e as boquinhas que se fizeram. Serviram-me, ainda bem que não fui eu a tirar da travessa, que não sabia de onde havia de tirar fosse o que fosse. Esperaram que eu comesse. Eu esperei que eles se fossem embora. Se não fosses tu a dizer para eu comer, ainda agora estaríamos todos para ali à espera uns dos outros.

Que estava delicioso estava, mas para mim, e desculpa qualquer coisinha, mas não passava de um frango com molho de cogumelos, manteiga e umas ervas se calhar apanhadas ali mesmo no jardim do CCB e mijadas pelos cães.

Fomos comendo e tu a falares da Esturdinhas, aquela tua prima ninfomaníaca que tanto brado dava no Estoril. Porque é que não falas mais baixo, perguntei a susurrar e tu “o quê?” lá se foi a descrição se é que ainda restava alguma. Comi o resto do frango com as gambas que sobraram do “couvert”. O Raposeira também já ia, e tu deixaste mais de metade no prato. Por causa da linha, disseste, e eu feito estúpido a olhar para ti à procura de uma linha. Só comigo.

Resumindo aquilo que queria de ti não aconteceu, porque depois do jantar estavas com pressa, que nem me desse ao trabalho de me levantar da mesa. Ainda pedi um Napoleon com o café e quando veio a conta, quase que exigi o chapéu de penas que vinha a acompanhar o frango. O que vale é que o teu marido é que ia pagar o jantar.

Mas ainda não tinha começado o raio da apresentação sobre os efeitos do álcool no organismo, principalmente ao nível do fígado. Matéria engraçada aquela depois de dois Raposeira e um Napoleon, uma caixa de cigarrilhas e três puros. Era só saúde. Mas tu estragaste tudo. Quase que posso dizer, “entrou e disse, tirou o chapéu e foi-se”. Um verdadeiro furacão e eu feito parvo de copo na mão à porta do restaurante enquanto tu davas ordens na cozinha. O que eu queria mesmo era que me levasses para casa e me violasses. Não posso fazer planos. Contigo não. Para além de deixares o restaurante de queixo caído, com o teu “não sei o quê” vestido e de estola, afinal sempre era inverno, ainda foste para a cozinha. Eu que me contentasse com o couvert e já não era mau. Eu que pensava retirar de ti inspiração para aquele cavalo de batalha, com as tuas maleitas e conhecimentos de medicina de trazer por casa. A mim sempre me pareceu que sabias mais de coisas de médico que o artolas do teu marido. Mas esse tirou o curso de medicina para ser gestor. Gostava de ver um formado em gestão a operar hérnias.

Três e meia. Toca o telefone. Toca o telefone? Quem será a esta hora? Tu, só podias ser tu. A perguntar-me o que é que eu afinal queria de ti. Devia estar a faltar-te o lítio, ou então andas a tomas anfs para não engordar. Disse-te para vires cá a casa à espera que dissesses que não. Qual não é o meu espanto quando me dizes que já vens a caminho. Eu só me meto com gente doida. Porque é que não fui para psiquiatria? A campainha tocou, subiste e entraste de rompante. O vestido ainda era o mesmo, mas a estola foi trocada por uma echarpe verde relva.

O que é que queres? Olha que me digas por onde é que o teu marido quer que eu comece a apresentação. Ainda nisso? Já devia estar pronto há uma semana, ele anda todo nervoso com essa coisa. Pois olha, não está mais nervoso que eu. Afinal o que é que tens pronto? Tudo. É só arrumar. Mostra lá. Estive para te perguntar o que é que querias ver primeiro, se amim se aos dados, mas já estava sem pachorra. Em dez minutos, mostraste-me a apresentação pronta. Afinal tinha razão em ter –te convidado, muito embora mantivesse as minhas dúvidas sobre o que fazias ali a esta hora.

Venho despedir-me de ti, disseste. Eu impávido, já não era a primeira vez que me dizias isso. Vou para o Chile. Para a Praça do Chile? Ainda perguntei a chacotear. Não estúpido, ouvi e calei-me. Para o Chile, o país da Patagónia. Vou com o Alberto. Acabou-se. O panhonha do meu marido que fique com a cozinheira já que gosta tanto de Cuzinhar com ela. Sentei-me. Era informação a mais. Ainda fui à caixa dos puros, mas ouvi logo um “nem penses em fumar essa bosta de cavalo ao pé de mim”. Estou na minha casa, sou informado que me vão abandonar e ainda me mandam estar quieto. Não, puxei uma cigarrilha e acendi-a antes que ela dissesse alguma coisa. Ao menos isto, disse eu. Levei com aqueles olhos pretos em cima que pareciam dois carvões em brasa. (mas como é que o vestido não se desloca das mamas?).

Quando é que vais? Perguntei. Esta noite, e vim dizer-te que não vais precisar de ir amanhã fazer a apresentação. O conselho de administração vai adiá-la. Venho despedir-me de ti. Virou as costas e agarrou na porta da rua. Nem um beijo? Pergunto sem esperança. Sim, isso mereces. Beijamo-nos e descobri porque é o vestido não se deslocava das mamas. Também fiquei colado.

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Cores


Olho-te. O que vejo são pontos de cristal de prata que assentes num papel estabelecem a tua imagem. Antes a prata, agora o plástico da fibra óptica. A diferença está no tempo. Sempre tiveste cabelo curto, ao contrário da tua irmã que teimava em tê-lo mais comprido. Um pouco mais para sabermos que eram diferentes.

Olho-te. Repito. Gosto de me repetir. Na minha idade a repetição é uma necessidade para cristalizar o movimento. Olho-te e tento ouvir-me onde estou. A milhares de kilometros de distancia. À distância do tempo. 1975, 2005, 2010. Trinca e cinco anos e ainda somos os mesmos. As mesmas caras, as mesmas vozes, os mesmos anseios. O que mudou afinal?

Tudo e nada. Eu agora tenho uma gato, um apartamento vazio de gente, milhares de discos, milhares de livros, que nem que tenha cem vidas os vou ler a todos e compreender. E tu? O que fizeste para além de ter filhos e cabelos brancos?

Eu não fiz nada. Nada tenho feito. Sou eu, apenas eu e continuo a ser eu. Não sei o que me aconteceu. Mas hoje que me visitaste, tudo se tornou diferente. Os verdes não são mais verdes e o vermelho mudou de tom. Há um azul que eu nunca tinha notado e um amarelo que nem sabia que existia. As estantes tornaram-se imensas e os discos sem sentido. Não há uma musica que te defina, um disco que te presenteie. Tudo muda. Tudo ficou mudo.

Voltaste ou retornaste? Sempre tive dificuldade com estas duas palavras. Entras tu e a casa muda de lugar. Não te ofereço um chá. As mulheres costumam gostar de chá, estou atrapalhado, bebes comigo daquele malte, de trinta anos, ou sou eu a delirar. Mudaste tudo. Já não sou eu. Tens um lugar na sala, chegaste, escolheste esse assento e ele já é teu. Ponto. Este ponto é para mim para que eu não me esqueça de colocar um ramo de flores ali todas as semanas.

O que dizemos? Ah, sim, …, pois! Nada. Nada de nada a não ser: “ o teu apartamento é espaçoso” a tua forma de dizeres não tens mobília nem cortinados nas janelas.

Eu digo que para mim me basta. (mas porque é que fiz a cama de lavado?), os anos não passaram por ti, por ti também não, continuas com o mesmo penteado. Ironia do meu escasso cabelo. O que continua é a minha solidão depois de ti. Essa sim real.

Quiseste conhecer a casa, viste a sala da música, o escritório biblioteca, a cozinha, até a casa de banho. Por fim o quarto. Oh meu Deus! Entraste. Sentaste-te na cama. Porque tens uma cama de casal perguntas olhando para o lado. Porque gosto de dormir confortável, digo eu, mentindo. E permaneces sentada. Eu no umbral da porta. Essa fronteira entre o sim e o não.

Virei as costas e disse-te a caminho da sala que as pedras de gelo se haviam dissipado no malte, que já não ias saborear tão valioso néctar. A quem estava eu a enganar? Sentei-me no sofá, estendido para o chão. Havia espaço. Demoraste a chegar do quarto. Disseste que já não te apetecia beber. Mudaste. O teu cenho estava mais carregado e o teu sorriso havia desaparecido. Eu não sabia o que fazer ou dizer. O teu malte ficou adulterado, disse. Também não me apetece beber, disseste. Vou-me embora. Já? Sim, daqui a pouco o Armando chega e eu quero estar em casa. Às cinco deverei estar sempre em casa. Até lá posso fazer o que quiser, remataste. Deste o mote. E eu, “levo-te!”, não é preciso, eu sei o caminho, disseste. Agora já tenho o teu número de telefone, será mais fácil. Falo-te daqui a dias, estás em casa? Sim, respondi de surpresa, claro que sim. Pouco saio. Para além disso trabalho em casa. Eu ligo-te.

E assim te levantaste, alisaste a saia que me permitiu ver os teus joelhos de adolescente, e te foste. Fiquei só. Encostado à porta ouvi o elevador descer até ao r/c. o gato esta sentado a olhar para mim. Eu não conseguia sair dali. Não te fui ver no teu tap, tap, pela rua até ao eléctrico. Escorreguei pela porta e já sentado no chão, chorei adolescente, pelo amor que te sentia.

Ainda eras uma miragem.


LAM

Tempo


Serás o tempo que tem o tempo?

Todo o tempo sem tempo

Para que o tempo te dê tempo

No tempo a tempo?


Serás a noite ou o dia a tempo

Esse tempo que só o tempo

Pode responder a tempo

Tempo sem tempo não é tempo.


Temos tempo!

Dizes, com tempo.

Vamos a tempo!


Temo o tempo

De não chegar a tempo.

Ao tempo que tem o tempo.


LAM

Os teus olhos amendoa


Encontrei-te na rua. Estavas encharcada da chuva que caía. O teu queixo tremia de frio onde um pingo persistente teimava. Estavas de mão estendida na entrada do Metro. Um passo e não apanhavas chuva, mas insistias nesse recanto onde as gosta de chuva são dispersas mas mais espessas. Olhei-te e fiquei sem saber se tu eras a chuva ou se a chuva te tinha feito naquela entrada. Porque olhaste para mim com os teus olhos de amêndoa?

O teu queixo não parava de tremer. Despi a minha gabardine e envolvi-te nela. Agora a minha roupa estava como a tua. Molhada por dentro e por fora.

Passei-te um braço pelos ombros e deixaste-te guiar sem problemas para dentro do metro.

Não passámos do meio do corredor. Estacaste, hirta, firme.

De repente a relutância venceu a tua inércia. Foi como que o acordar de um sonho. Espirraste. Dei-te um lenço de papel que aceitaste. De novo os teus olhos de amêndoa se prenderam nos meus.

Perguntei-me que idade teria para estar assim, se estar assim tivesse idade. O teu olhar suplicava. Receio, medo, desconfiança? Tudo isso e nada perante um estranho que te havia posto uma gabardine em cima para te proteger da chuva e da corrente de ar que se fazia sentir no corredor do metro, embora quente.

A tua roupa, desadequada para o tempo que fazia, mostrava que não eras uma qualquer. A camisola em cima da pele, denunciava a tua condição de mulher jovem. Na mão esquerda, no anelar, uma aliança de ouro.

Arrisquei a pergunta – Que estavas ali a fazer? Tardaste na resposta. Olhaste em volta e por fim, com os teus olhos fitos nos meus, pediste-me que te salvasse. De quê? Do meu vício, da necessidade que tenho de todos os dias me injectar. Estás de ressaca? Ainda não, mas está perto. Toda tu me parecia sincera e eu tinha uma necessidade enorme de acreditar.

Saímos do Metro e chamei um táxi para te levar a um hospital. Lá dentro soube quem tu eras e o mundo tornou-se pequeno. És apenas, a filha do director do meu departamento. Nada de mais, mas também nada de menos. Ironia.

Quando te levaram para dentro, depois das minhas indicações, devolveram-me a gabardine. Num relance olhaste para mim com os teus olhos de amêndoa, em súplica.

Fui para o trabalho e falei com o director sobre o que se havia passado. Ele saiu apressado sem me agradecer. Também não era preciso.

Uma semana depois, estava já no escritório quando o teu pai entrou. Ao passar por mim pediu-me para o acompanhar. Só o vi de frente quando me sentei na mesa de reuniões. Foi nessa altura, pelas olheiras profundas do teu pai que previ o que confirmava o que estava ouvir: A Lídia morreu de uma overdose. Fiquei sem saber o que fazer ou dizer. Os teus olhos de amêndoa chegaram aos meus e colocaram neles duas lágrimas. Deixei que se soltassem. Era essa a minha homenagem a ti.



LAM

Matrix

A noite chuvosa impedia que o sono se reconciliasse comigo. Era uma contradição. Ouvir a chuva é relaxante para tanta gente e para mim tem este efeito perverso que é o de me deixar acordado. Talvez porque a varanda do meu quarto fique virada para o lado onde a chuva cai, ou não.

Não me impedia de pensar em ti, no que tínhamos partilhado no computador. Esta máquina tem o dom de fazer abrir as pessoas. Nunca falei assim com ninguém antes, pese embora o facto de todo o meu trajecto ser formal e de ter poucos amigos. Muito poucos. Viver sozinho também não ajuda muito ao diálogo. Falar com um gato é uma frustração. Olha para nós até ao primeiro verbo e depois desloca-se languidamente onde a voz não se ouça. Nada demais para um gato. Também o prefiro assim. Se ele falasse, talvez me dissesse do tédio que sente em viver comigo e não conhecer mais nenhum gato ao ponto de pensar que é único no universo. Pelo menos é assim que se comporta. A minha cadeira é a cadeira dele. Seja qual for a cadeira.

As refregas na janela, convidavam ao recolhimento, mas ao invés de me sentir só, sabia-me acompanhado por ti. Nunca ninguém ousara falar em desejo comigo. Às vezes as coisas aconteciam e era tudo. Agora não. Havia todo um léxico e um número interminável de termos para designar a mesma coisa. Como pode uma máquina tornar tudo tão físico. Será que se estivesses aqui a meu lado também estarias acordada como eu? Será mesmo que agora estás acordada? Contenho-me em saber, o computador está a três passos do quarto, e fico quieto. Prefiro digerir as tuas palavras. Há um dilema. O que me fazes sentir e o que sou sem ti.

A máquina aproxima-nos na mesma proporção em que nos afasta. Depois do Off, fica a auréola no ar, o sabor místico das palavras ditas e outras adivinhadas na pontuação, nas entrelinhas.

Desejo. Quantas formas há de o expressar para além das palavras?

Quem és tu? Neste momento uma fotografia difusa da tua adolescência. Nota-se que a fotografia tem pelo menos trinta anos. O preto e branco, o pullover, as calças e o corte de cabelo embora heterodoxo, é daquela época. O resto são palavras. As tuas e as minhas. Não fomos para além disto. Aqui sentado na cama, com o gato aos pés e com a luz difusa da rua filtrada pela chuva imagino mil variações para o tema relacionamento. O teu relacionamento. Meço-o pela contenção na palavra encontro, sinto-o de cada vez que o quero ver-te sobressai, quer de um lado quer do outro. Contenção. Tu própria não me sabes para além do que eu te digo, embora não tenha tido segredos para ti, a não ser o sítio onde moro. Mas se fores expert em informática, pelo meu IP, sabes onde estou e quem é o meu provedor de serviço. A informática tem estas armadilhas. Mais uma vez o gato. Escondido mas com o rabo de fora.

A minha foto está exposta para quem a quiser ver. Eu que sou tão discreto na vida, me expus assim, sem pejo. Sou eu quem lá está. Nem olho para a máquina que me aprisiona a figura, tal é o desprezo que lhe tenho. Sou eu mas não estou lá. E neste romance a preto e branco do teclado de um qualquer pc, exponho o que dali não se vê. Quem sou afinal? Nem eu próprio sei quando me comparo. Não me reconheço na foto. Talvez pelo facto de não me ver todos os dias. Estou sempre comigo, mas vejo-me tão pouco. Assim tenho crescido, por isso das fotos mais antigas veja alguém que em tempos julguei ser.

A quem te confidencias? À minha foto ou à minha escrita? Ou a ambas, ou a nenhuma? Eu sei o que sou contigo. Tenho noção da minha virtualidade. Mas o que sou? Tenho de to perguntar. Saberás responder?

A chuva insiste. Levanto-me, vejo a luz azul do ecrã do pc na divisão da casa ao lado do quarto, mas vou direito à cozinha. Porque ficou o computador ligado?

Na cozinha posso abrir de para em para as janelas. Aqui não chove. Acendo um cigarro e o barulho dos pingos de chuva no asfalto e em cima dos carros estacionados é, agora sim, relaxante. Por piada, concentro-me no feixe de luz do candeeiro da rua e imagino que só ali é que chove. Sorrio entre duas fumaças. O gato veio ter comigo. Vem sempre quando venho para esta janela. Obrigou-me a arranjar uma mesa à altura dos vidros para ficar de sentinela. Ele gosta deste lado da casa, quando não me está a aborrecer com a história das cadeiras.

Quem és tu afinal, para além de um numero limitado de bits?

Follow the white rabbit!

Blue or red pill?



LAM

quarta-feira, 9 de junho de 2010

[que se calou...]

Que se calou tão de repente braço,
disperso e largo de brasil distante?
Tão calado sou eu que o amordaço
e raspo a sua tinta galopante?

Será de punho e medo, ou só a ira
crescendo a fazer sombra sobre tudo?
Será agora o pombo, em que se insira
entre o correr um bico mudo?

- Ou será só não mais que um motivo
para andar mais depressa pelo meio
de estar presente e mosto, ausente e vivo,

e vir, depois de esperas e paleio,
beber água deveras neste esquivo,
porém terno e tremente, seio?

Pedro Tamen; "Principio de sol "; circulo de leitores

domingo, 6 de junho de 2010

A mente é como um rio e tal como no caso de um rio, não vale a pena deter o seu curso

O pensamento é a actividade natural da mente. A meditação não tem que ver com parar os pensamentos. A meditação é apenas um processo de repousar a mente no seu estado natural, que está aberto aos pensamentos, emoções e sensações e tem uma percepção natural deles.

Yongey Mingyur Rinpoche; " A Alegria de Viver"; Temas e Debates

sexta-feira, 7 de maio de 2010

domingo, 18 de abril de 2010

faltas-me



Falta-me a metade que falta

A metade do arpegio, acorde incompleto

Falta-me a metade da outra falta

Metade dum sonho sonhado a dois que um se perdeu

Falta-me metade do que falta a uma metade

Faltas-me tu

Um tu incógnito que preenche um vago no meu coração

Um arco de violeta no jardim luado de branco

Jasmim, metade do aroma da tarde

Faltas-me, faltas-me sempre

Sempre que a cor do amanhecer acontece

Desaparece a noite, tu

Que me despertas do sono amanhecido tarde,

De um sonho sempre acordado,

É onde me falta essa metade,

Metade que és tu.

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Serenidade És Minha

À Memória de Fernando Pessoa


Vem, serenidade!
Vem cobrir a longa
fadiga dos homens,
este antigo desejo de nunca ser feliz
a não ser pela dupla humanidade das bocas.


Vem serenidade!
Faz com que os beijos cheguem à altura dos ombros

e com que os ombros cheguem à altura dos lábios,

e com que os lábios cheguem à altura dos beijos.


Carrega para a cama dos desempregados
todas as coisas verdes, todas as coisas vis
fechadas no cofre das águas:
os corais, as anémonas, os montros sublunares,
as algas, porque um fio de prata lhes enfeita os cabelos.


Vem serenidade,
com o país veloz e virginal das ondas,
com o martírio leve dos amantes sem Deus,
com o cheiro sensual das pernas no cinema,
com o vinho e as uvas e o frémito das virgens,
com o macio ventre das mulheres violadas,
com os filhos que os pais amaldiçoam,
com as lanternas postas à beira dos abismos,
e os segredos e os ninhos e o feno
e as procissões sem padre, sem anjos e, contudo,
com Deus molhando os olhos
e as esperanças dos pobres.


Vem, serenidade,
com a paz e a guerra
derrubar as selvagens
florestas do instinto.


Vem, e levanta
palácios na sombra.
Tem a paciência de quem deixa entre os lábios
um espaço absoluto.


Vem, e desponta,
oriunda dos mares,
orquídea fresca das noites vagabundas,
serena espécie de contentamento,
surpresa, plenitude.


Vem dos prédios sem almas e sem luzes,
dos números irreais de todas as semanas,
dos caixeiros sem cor e sem família,
das flores que rebentam nas mãos dos namorados,
dos bancos que os jardins afogam no silêncio,
das jarras que os marujos trazem sempre da China,
dos aventais vermelhos com que as mulheres esperam
a chegada da força e da vertigem.


Vem, serenidade,
e põe no peito sujo dos ladrões
a cruz dos crimes sem cadeia,
põe na boca dos pobres o pão que eles precisam,
põe nos olhos dos cegos a luz que lhes pertence.


Vem nos bicos dos pés para junto dos berços,
para junto das campas dos jovens que morreram,
para junto das artérias que servem
de campo para o trigo, de mar para os navios.


Vem, serenidade!
E do salgado bojo das tuas naus felizes
despeja a confiança,
a grande confiança.
Grande como os teus braços,
grande serenidade!


E põe teus pés na terra,
e deixa que outras vozes
se comovam contigo
no Outono, no Inverno,
no Verão, na Primavera.


Vem, serenidade,
para que não se fale
nem de paz nem de guerra nem de Deus,
porque foi tudo junto
e guardado e levado
para a casa dos homens.


Vem, serenidade,
vem com a madrugada,
vem com os anjos de oiro que fugiram da Lua,
com as núvens que proíbem o céu,
vem com o nevoeiro.


Vem com as meretrizes que chamam da janela,
volume dos corpos saciados na cama,
as mil aparições do amor nas esquinas,
as dívidas que os pais nos pagam em segredo,
as costas que os marinheiros levantam
quando arrastam o mar pelas ruas.


Vem serenidade,
e lembra-te de nós,
que te esperamos há séculos sempre no mesmo sítio,
um sítio aonde a morte tem todos os direitos.


Lembra-te da miséria dourada dos meus versos,
desta roupa de imagens que me cobre
corpo silencioso,
das noites que passei perseguindo uma estrela,
do hálito, da fome, da doença, do crime,
com que dou vida e morte
a mim próprio e aos outros.


Vem serenidade,
e acaba com o vício
de plantar roseiras no duro chão dos dias,
vício de beber água
com o copo do vinho milagroso do sangue.


Vem, serenidade,
não apagues ainda
a lâmpada que forra
os cantos do meu quarto,
papel com que embrulho meus rios de aventura
em que vai navegando o futuro.


Vem, serenidade!
E pousa, mais serena que as mãos de minha Mãe,
mais húmida que a pele marítima da cais,
mais branca que o soluço, o silêncio, a origem,
mais livre que uma ave em seu voo,
mais branda que a grávida brandura do papel em que escrevo,
mais humana e alegre que o sorriso das noivas,
do que a voz dos amigos, do que o sol nas searas.


Vem serenidade,
para perto de mim e para nunca.
… … ... … ... … … … … … … … … … … … … … … … … … … …


De manhã, quando as carroças de hortaliça
chiam por dentro da lisa e sonolenta
tarefa terminada,
quando um ramo de flores matinais
é uma ofensa ao nosso limitado horizonte,
quando os astros entregam ao carteiro surpreendido
mais um postal da esperança enigmática,
quando os tacões furados pelos relógios podres,
pelas tardes por trás das grades e dos muros,
pelas convencionais visitas aos enfermos,
formam, em densos ângulos de humano desespero,
uma núvem que aumenta a vâ periferia
que rodeia a cidade,
é então que eu peço como quem pede amor:
Vem serenidade!


Com a medalha, os gestos e os teus olhos azuis,
vem, serenidade!


Com as horas maiúsculas do cio,
com os músculos inchados da preguiça,
vem, serenidade!


Vem, com o perturbante mistério dos cabelos,
o riso que não é da boca nem dos dentes
mas que se espalha, inteiro,
num corpo alucinado de bandeira.


Vem serenidade,
antes que os passos da noite vigilante
arranquem as primeiras unhas da madrugada,
antes que as ruas cheias de corações de gás
se percam no fantástico cenário da cidade,
antes que, nos pés dormentes dos pedintes,
a cólera lhes acenda brasas nos cinco dedos,
a revolta semeie florestas de gritos
e a raiva vá partir as amarras diárias.


Vem, serenidade,
leva-me num vagon de mercadorias,
num convés de algodão e borracha e madeira,
na hélice emigrante, na tábua azul dos peixes,
na carnívora concha do sono.


Leva-me para longe
deste bíblico espaço,
desta confusão abúlica dos mitos,
deste enorme pulmão de silêncio e vergonha.
Longe das sentinelas de mármore
que exigem passaporte a quem passa.


A bordo, no porão,
conversando com velhos tripulantes descalços,
crianças criminosas fugidas à polícia,
moços contrabandistas, negociantes mouros,
emigrados políticos que vão
em busca da perdida liberdade.
Vem, serenidade
e leva-me contigo.


Com ciganos comendo amoras e limões,
e música de harmónio, e ciúme, e vinganças,
e subindo nos ares o livre e musical
facho rubro que une os seios da terra ao Sol.


Vem, serenidade!
Os comboios nos esperam.
Há famílias inteiras com o jantar na mesa,
aguardando que batam, que empurrem, que irrompam
pela porta levíssima,
e que a porta se abra e por ela se entornem
os frutos e a justiça.


Serenidade, eu rezo:
Acorda minha mãe quando ela dorme,
quando ela tem no rosto a solidão completa
de quem passou a noite perguntando por mim,
de quem perdeu de vista o meu destino.


Ajuda-me a cumprir a missão de poeta,
a confundir, numa só e lúcida claridade,
a palavra esquecida no coração do homem.


Vem serenidade
e absolve os vencidos,
regulariza o trânsito cardíaco dos sonhos
e dá-lhes nomes novos,
novos ventos, novos portos, novos pulsos.


E recorda comigo o barulho das ondas,
as mentiras da fé, os amigos medrosos,
os assombros da Índia imaginada,
o espanto aprendiz da nossa fala,
ainda nossa, ainda bela, ainda livre
destes montes altíssimos que tapam
as veias ao Oceano.


Vem, serenidade,
e faz que não fiquemos doentes, só de ver
que a beleza não nasce dia a dia na terra.


E reúne os pedaços dos espelhos partidos,
e não cedas demais ao vislumbre de vermos
a nossa idade exacta
outra vez paralela ao percurso dos pássaros.


E dá asas ao peso
da melancolia,
e põe ordem no caoss e carne nos espectros,
e ensina aos suicidas a volúpia do baile,
e enfeitiça os dois corpos quando eles se apertarem,
e não apagues nunca o fogo que os consome,
o impulso que os coloca, nus e iluminados,
no topo das montanhas, no extremo dos mastros,
na chaminé do sangue.


Serenidade, assiste
à multiplicação original do Mundo:
Um manto terníssimo de espuma,
um ninho de corais, de limos, de cabelos,
um universo de algas despidas e retrácteis,
um polvo de ternura deliciosa e fresca.


Vem, e compartilha
das mais simples paixões,
do jogo que jogamos sem parceiro,
dos humilhantes nós que a garganta irradia,
da suspeita violenta, do inesperado abrigo.


Vem, com teu frio de esquecimento,
com a tua alucinante e alucinada mão,
e põe, no religioso ofício do poema,
a alegria, a fé, os milagres, a luz!


Vem, e defende-me
da traição dos encontros,
do engano na presença de Aquele
cuja palavra é silêncio,
cujo corpo é de ar,
cujo amor é demais
absoluto e eterno
para ser meu, que o amo.


Para sempre irreal,

para sempre obscena,

para sempre inocente

Serenidade, és minha.


Raul de Carvalho, "Realidade Branca", Circulo de Leitores, 1975, pag 61-70