quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Matrix

A noite chuvosa impedia que o sono se reconciliasse comigo. Era uma contradição. Ouvir a chuva é relaxante para tanta gente e para mim tem este efeito perverso que é o de me deixar acordado. Talvez porque a varanda do meu quarto fique virada para o lado onde a chuva cai, ou não.

Não me impedia de pensar em ti, no que tínhamos partilhado no computador. Esta máquina tem o dom de fazer abrir as pessoas. Nunca falei assim com ninguém antes, pese embora o facto de todo o meu trajecto ser formal e de ter poucos amigos. Muito poucos. Viver sozinho também não ajuda muito ao diálogo. Falar com um gato é uma frustração. Olha para nós até ao primeiro verbo e depois desloca-se languidamente onde a voz não se ouça. Nada demais para um gato. Também o prefiro assim. Se ele falasse, talvez me dissesse do tédio que sente em viver comigo e não conhecer mais nenhum gato ao ponto de pensar que é único no universo. Pelo menos é assim que se comporta. A minha cadeira é a cadeira dele. Seja qual for a cadeira.

As refregas na janela, convidavam ao recolhimento, mas ao invés de me sentir só, sabia-me acompanhado por ti. Nunca ninguém ousara falar em desejo comigo. Às vezes as coisas aconteciam e era tudo. Agora não. Havia todo um léxico e um número interminável de termos para designar a mesma coisa. Como pode uma máquina tornar tudo tão físico. Será que se estivesses aqui a meu lado também estarias acordada como eu? Será mesmo que agora estás acordada? Contenho-me em saber, o computador está a três passos do quarto, e fico quieto. Prefiro digerir as tuas palavras. Há um dilema. O que me fazes sentir e o que sou sem ti.

A máquina aproxima-nos na mesma proporção em que nos afasta. Depois do Off, fica a auréola no ar, o sabor místico das palavras ditas e outras adivinhadas na pontuação, nas entrelinhas.

Desejo. Quantas formas há de o expressar para além das palavras?

Quem és tu? Neste momento uma fotografia difusa da tua adolescência. Nota-se que a fotografia tem pelo menos trinta anos. O preto e branco, o pullover, as calças e o corte de cabelo embora heterodoxo, é daquela época. O resto são palavras. As tuas e as minhas. Não fomos para além disto. Aqui sentado na cama, com o gato aos pés e com a luz difusa da rua filtrada pela chuva imagino mil variações para o tema relacionamento. O teu relacionamento. Meço-o pela contenção na palavra encontro, sinto-o de cada vez que o quero ver-te sobressai, quer de um lado quer do outro. Contenção. Tu própria não me sabes para além do que eu te digo, embora não tenha tido segredos para ti, a não ser o sítio onde moro. Mas se fores expert em informática, pelo meu IP, sabes onde estou e quem é o meu provedor de serviço. A informática tem estas armadilhas. Mais uma vez o gato. Escondido mas com o rabo de fora.

A minha foto está exposta para quem a quiser ver. Eu que sou tão discreto na vida, me expus assim, sem pejo. Sou eu quem lá está. Nem olho para a máquina que me aprisiona a figura, tal é o desprezo que lhe tenho. Sou eu mas não estou lá. E neste romance a preto e branco do teclado de um qualquer pc, exponho o que dali não se vê. Quem sou afinal? Nem eu próprio sei quando me comparo. Não me reconheço na foto. Talvez pelo facto de não me ver todos os dias. Estou sempre comigo, mas vejo-me tão pouco. Assim tenho crescido, por isso das fotos mais antigas veja alguém que em tempos julguei ser.

A quem te confidencias? À minha foto ou à minha escrita? Ou a ambas, ou a nenhuma? Eu sei o que sou contigo. Tenho noção da minha virtualidade. Mas o que sou? Tenho de to perguntar. Saberás responder?

A chuva insiste. Levanto-me, vejo a luz azul do ecrã do pc na divisão da casa ao lado do quarto, mas vou direito à cozinha. Porque ficou o computador ligado?

Na cozinha posso abrir de para em para as janelas. Aqui não chove. Acendo um cigarro e o barulho dos pingos de chuva no asfalto e em cima dos carros estacionados é, agora sim, relaxante. Por piada, concentro-me no feixe de luz do candeeiro da rua e imagino que só ali é que chove. Sorrio entre duas fumaças. O gato veio ter comigo. Vem sempre quando venho para esta janela. Obrigou-me a arranjar uma mesa à altura dos vidros para ficar de sentinela. Ele gosta deste lado da casa, quando não me está a aborrecer com a história das cadeiras.

Quem és tu afinal, para além de um numero limitado de bits?

Follow the white rabbit!

Blue or red pill?



LAM

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