sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

A Apresentação


São três horas da manhã e a apresentação ainda não está pronta. Melhor dizendo ainda não está começada. Tenho todos os dados, todos os valores e fotos. Os gráficos estão prontos, já só falta dar ordem àquela informação toda e fazer o Power Point. Dot.

A janela está aberta, os mosquitos entram e só não me mordem porque estou envolto no perfume do Cohiba. Já é o terceiro depois do jantar.

Apetece-me mandar aquele monte de médicos para os confins do inferno. Eles dão-me o sustento, mas também me sugam o sangue. Apeteceu-me por o braço fora da janela e esperar pela próxima melga.

Para tudo há uma desculpa, ou um culpado. Aqui o culpado sou eu. A desculpa és tu. Sou eu o culpado porque te convidei para jantar, tu és a desculpa porque à última da hora decidiste aceitar, mandando o Artur às urtigas. (Ainda me rio com esta).

Eu sabia que se viesses, não ia fazer a digestão. Tens esse dom. O de provocar azia num estômago vazio.

Como sempre, chamaste a atenção de toda a gente quando entraste no restaurante. Um vestido de cavas até à cintura, sem peito nem costas e um estola a tiracolo. Mas porque é que eu ainda te ligo, pergunto-me. Assim que te sentaste, ainda o empregado não tinha ajustado a cadeira ao teu assento e já pedias um Champagne de Vignerons. A 15º, foste clara. E um Poule faisane rôtie au beurre de combawa, sem que te tivessem trazido a lista. Oi Clara, estamos no jardim do CCB, alô, aqui terra. Escuto. Qual quê qual nada. Fiquei com pena do Artur, deveras que fiquei e ainda mais quando o Chef, ele mesmo veio pedir meças contigo. Mas reconheço que és uma belíssima cozinheira, aliás fiquei feito parvo na mesa, sozinho enquanto davas ordens na cozinha e eu com um Raposeira, brut à minha frente. Fui bebendo alternando com umas gambas e umas Cigarrilhas Backwoods Wild Rum, aliás iam fazer uma boa mistura com o Raposeira. Que jantar este. Eu que esperava uma lamechice qualquer apanho com uma bipolar em fase mania. Irra. O empregado foi chamar-me. Na mesa, para além de ti, está um faisão ainda com penas e um monte de coisas que se eu as descrever vomito. Mantenho o Brut Raposeira, pelo sim pelo não. Num passe de mágica, sai a penugem e um prato com todo o requinte apareceu à minha frente. Tenho que reconhecer que conheço pessoas influentes. O chef veio assistir à primeira garfada, dada por ti como é óbvio. Abstenho-me de comentar as mesuras e as boquinhas que se fizeram. Serviram-me, ainda bem que não fui eu a tirar da travessa, que não sabia de onde havia de tirar fosse o que fosse. Esperaram que eu comesse. Eu esperei que eles se fossem embora. Se não fosses tu a dizer para eu comer, ainda agora estaríamos todos para ali à espera uns dos outros.

Que estava delicioso estava, mas para mim, e desculpa qualquer coisinha, mas não passava de um frango com molho de cogumelos, manteiga e umas ervas se calhar apanhadas ali mesmo no jardim do CCB e mijadas pelos cães.

Fomos comendo e tu a falares da Esturdinhas, aquela tua prima ninfomaníaca que tanto brado dava no Estoril. Porque é que não falas mais baixo, perguntei a susurrar e tu “o quê?” lá se foi a descrição se é que ainda restava alguma. Comi o resto do frango com as gambas que sobraram do “couvert”. O Raposeira também já ia, e tu deixaste mais de metade no prato. Por causa da linha, disseste, e eu feito estúpido a olhar para ti à procura de uma linha. Só comigo.

Resumindo aquilo que queria de ti não aconteceu, porque depois do jantar estavas com pressa, que nem me desse ao trabalho de me levantar da mesa. Ainda pedi um Napoleon com o café e quando veio a conta, quase que exigi o chapéu de penas que vinha a acompanhar o frango. O que vale é que o teu marido é que ia pagar o jantar.

Mas ainda não tinha começado o raio da apresentação sobre os efeitos do álcool no organismo, principalmente ao nível do fígado. Matéria engraçada aquela depois de dois Raposeira e um Napoleon, uma caixa de cigarrilhas e três puros. Era só saúde. Mas tu estragaste tudo. Quase que posso dizer, “entrou e disse, tirou o chapéu e foi-se”. Um verdadeiro furacão e eu feito parvo de copo na mão à porta do restaurante enquanto tu davas ordens na cozinha. O que eu queria mesmo era que me levasses para casa e me violasses. Não posso fazer planos. Contigo não. Para além de deixares o restaurante de queixo caído, com o teu “não sei o quê” vestido e de estola, afinal sempre era inverno, ainda foste para a cozinha. Eu que me contentasse com o couvert e já não era mau. Eu que pensava retirar de ti inspiração para aquele cavalo de batalha, com as tuas maleitas e conhecimentos de medicina de trazer por casa. A mim sempre me pareceu que sabias mais de coisas de médico que o artolas do teu marido. Mas esse tirou o curso de medicina para ser gestor. Gostava de ver um formado em gestão a operar hérnias.

Três e meia. Toca o telefone. Toca o telefone? Quem será a esta hora? Tu, só podias ser tu. A perguntar-me o que é que eu afinal queria de ti. Devia estar a faltar-te o lítio, ou então andas a tomas anfs para não engordar. Disse-te para vires cá a casa à espera que dissesses que não. Qual não é o meu espanto quando me dizes que já vens a caminho. Eu só me meto com gente doida. Porque é que não fui para psiquiatria? A campainha tocou, subiste e entraste de rompante. O vestido ainda era o mesmo, mas a estola foi trocada por uma echarpe verde relva.

O que é que queres? Olha que me digas por onde é que o teu marido quer que eu comece a apresentação. Ainda nisso? Já devia estar pronto há uma semana, ele anda todo nervoso com essa coisa. Pois olha, não está mais nervoso que eu. Afinal o que é que tens pronto? Tudo. É só arrumar. Mostra lá. Estive para te perguntar o que é que querias ver primeiro, se amim se aos dados, mas já estava sem pachorra. Em dez minutos, mostraste-me a apresentação pronta. Afinal tinha razão em ter –te convidado, muito embora mantivesse as minhas dúvidas sobre o que fazias ali a esta hora.

Venho despedir-me de ti, disseste. Eu impávido, já não era a primeira vez que me dizias isso. Vou para o Chile. Para a Praça do Chile? Ainda perguntei a chacotear. Não estúpido, ouvi e calei-me. Para o Chile, o país da Patagónia. Vou com o Alberto. Acabou-se. O panhonha do meu marido que fique com a cozinheira já que gosta tanto de Cuzinhar com ela. Sentei-me. Era informação a mais. Ainda fui à caixa dos puros, mas ouvi logo um “nem penses em fumar essa bosta de cavalo ao pé de mim”. Estou na minha casa, sou informado que me vão abandonar e ainda me mandam estar quieto. Não, puxei uma cigarrilha e acendi-a antes que ela dissesse alguma coisa. Ao menos isto, disse eu. Levei com aqueles olhos pretos em cima que pareciam dois carvões em brasa. (mas como é que o vestido não se desloca das mamas?).

Quando é que vais? Perguntei. Esta noite, e vim dizer-te que não vais precisar de ir amanhã fazer a apresentação. O conselho de administração vai adiá-la. Venho despedir-me de ti. Virou as costas e agarrou na porta da rua. Nem um beijo? Pergunto sem esperança. Sim, isso mereces. Beijamo-nos e descobri porque é o vestido não se deslocava das mamas. Também fiquei colado.

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