quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Os teus olhos amendoa


Encontrei-te na rua. Estavas encharcada da chuva que caía. O teu queixo tremia de frio onde um pingo persistente teimava. Estavas de mão estendida na entrada do Metro. Um passo e não apanhavas chuva, mas insistias nesse recanto onde as gosta de chuva são dispersas mas mais espessas. Olhei-te e fiquei sem saber se tu eras a chuva ou se a chuva te tinha feito naquela entrada. Porque olhaste para mim com os teus olhos de amêndoa?

O teu queixo não parava de tremer. Despi a minha gabardine e envolvi-te nela. Agora a minha roupa estava como a tua. Molhada por dentro e por fora.

Passei-te um braço pelos ombros e deixaste-te guiar sem problemas para dentro do metro.

Não passámos do meio do corredor. Estacaste, hirta, firme.

De repente a relutância venceu a tua inércia. Foi como que o acordar de um sonho. Espirraste. Dei-te um lenço de papel que aceitaste. De novo os teus olhos de amêndoa se prenderam nos meus.

Perguntei-me que idade teria para estar assim, se estar assim tivesse idade. O teu olhar suplicava. Receio, medo, desconfiança? Tudo isso e nada perante um estranho que te havia posto uma gabardine em cima para te proteger da chuva e da corrente de ar que se fazia sentir no corredor do metro, embora quente.

A tua roupa, desadequada para o tempo que fazia, mostrava que não eras uma qualquer. A camisola em cima da pele, denunciava a tua condição de mulher jovem. Na mão esquerda, no anelar, uma aliança de ouro.

Arrisquei a pergunta – Que estavas ali a fazer? Tardaste na resposta. Olhaste em volta e por fim, com os teus olhos fitos nos meus, pediste-me que te salvasse. De quê? Do meu vício, da necessidade que tenho de todos os dias me injectar. Estás de ressaca? Ainda não, mas está perto. Toda tu me parecia sincera e eu tinha uma necessidade enorme de acreditar.

Saímos do Metro e chamei um táxi para te levar a um hospital. Lá dentro soube quem tu eras e o mundo tornou-se pequeno. És apenas, a filha do director do meu departamento. Nada de mais, mas também nada de menos. Ironia.

Quando te levaram para dentro, depois das minhas indicações, devolveram-me a gabardine. Num relance olhaste para mim com os teus olhos de amêndoa, em súplica.

Fui para o trabalho e falei com o director sobre o que se havia passado. Ele saiu apressado sem me agradecer. Também não era preciso.

Uma semana depois, estava já no escritório quando o teu pai entrou. Ao passar por mim pediu-me para o acompanhar. Só o vi de frente quando me sentei na mesa de reuniões. Foi nessa altura, pelas olheiras profundas do teu pai que previ o que confirmava o que estava ouvir: A Lídia morreu de uma overdose. Fiquei sem saber o que fazer ou dizer. Os teus olhos de amêndoa chegaram aos meus e colocaram neles duas lágrimas. Deixei que se soltassem. Era essa a minha homenagem a ti.



LAM

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