quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Cores


Olho-te. O que vejo são pontos de cristal de prata que assentes num papel estabelecem a tua imagem. Antes a prata, agora o plástico da fibra óptica. A diferença está no tempo. Sempre tiveste cabelo curto, ao contrário da tua irmã que teimava em tê-lo mais comprido. Um pouco mais para sabermos que eram diferentes.

Olho-te. Repito. Gosto de me repetir. Na minha idade a repetição é uma necessidade para cristalizar o movimento. Olho-te e tento ouvir-me onde estou. A milhares de kilometros de distancia. À distância do tempo. 1975, 2005, 2010. Trinca e cinco anos e ainda somos os mesmos. As mesmas caras, as mesmas vozes, os mesmos anseios. O que mudou afinal?

Tudo e nada. Eu agora tenho uma gato, um apartamento vazio de gente, milhares de discos, milhares de livros, que nem que tenha cem vidas os vou ler a todos e compreender. E tu? O que fizeste para além de ter filhos e cabelos brancos?

Eu não fiz nada. Nada tenho feito. Sou eu, apenas eu e continuo a ser eu. Não sei o que me aconteceu. Mas hoje que me visitaste, tudo se tornou diferente. Os verdes não são mais verdes e o vermelho mudou de tom. Há um azul que eu nunca tinha notado e um amarelo que nem sabia que existia. As estantes tornaram-se imensas e os discos sem sentido. Não há uma musica que te defina, um disco que te presenteie. Tudo muda. Tudo ficou mudo.

Voltaste ou retornaste? Sempre tive dificuldade com estas duas palavras. Entras tu e a casa muda de lugar. Não te ofereço um chá. As mulheres costumam gostar de chá, estou atrapalhado, bebes comigo daquele malte, de trinta anos, ou sou eu a delirar. Mudaste tudo. Já não sou eu. Tens um lugar na sala, chegaste, escolheste esse assento e ele já é teu. Ponto. Este ponto é para mim para que eu não me esqueça de colocar um ramo de flores ali todas as semanas.

O que dizemos? Ah, sim, …, pois! Nada. Nada de nada a não ser: “ o teu apartamento é espaçoso” a tua forma de dizeres não tens mobília nem cortinados nas janelas.

Eu digo que para mim me basta. (mas porque é que fiz a cama de lavado?), os anos não passaram por ti, por ti também não, continuas com o mesmo penteado. Ironia do meu escasso cabelo. O que continua é a minha solidão depois de ti. Essa sim real.

Quiseste conhecer a casa, viste a sala da música, o escritório biblioteca, a cozinha, até a casa de banho. Por fim o quarto. Oh meu Deus! Entraste. Sentaste-te na cama. Porque tens uma cama de casal perguntas olhando para o lado. Porque gosto de dormir confortável, digo eu, mentindo. E permaneces sentada. Eu no umbral da porta. Essa fronteira entre o sim e o não.

Virei as costas e disse-te a caminho da sala que as pedras de gelo se haviam dissipado no malte, que já não ias saborear tão valioso néctar. A quem estava eu a enganar? Sentei-me no sofá, estendido para o chão. Havia espaço. Demoraste a chegar do quarto. Disseste que já não te apetecia beber. Mudaste. O teu cenho estava mais carregado e o teu sorriso havia desaparecido. Eu não sabia o que fazer ou dizer. O teu malte ficou adulterado, disse. Também não me apetece beber, disseste. Vou-me embora. Já? Sim, daqui a pouco o Armando chega e eu quero estar em casa. Às cinco deverei estar sempre em casa. Até lá posso fazer o que quiser, remataste. Deste o mote. E eu, “levo-te!”, não é preciso, eu sei o caminho, disseste. Agora já tenho o teu número de telefone, será mais fácil. Falo-te daqui a dias, estás em casa? Sim, respondi de surpresa, claro que sim. Pouco saio. Para além disso trabalho em casa. Eu ligo-te.

E assim te levantaste, alisaste a saia que me permitiu ver os teus joelhos de adolescente, e te foste. Fiquei só. Encostado à porta ouvi o elevador descer até ao r/c. o gato esta sentado a olhar para mim. Eu não conseguia sair dali. Não te fui ver no teu tap, tap, pela rua até ao eléctrico. Escorreguei pela porta e já sentado no chão, chorei adolescente, pelo amor que te sentia.

Ainda eras uma miragem.


LAM

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