quarta-feira, 13 de maio de 2015

[sem titulo]

Photo © Henri Cartier-Bresson - Magnum Photos

Dou corpo à solidão, pois é dela que me alimento todos os dias. Percorro todas as avenidas, ruas, becos e pátios da memória à procura. De algo. Ando sempre à procura. De algo. Por vezes, sento-me num banco, ou num qualquer recanto mais sombrio, porque me doem os pés. Ou então é a alma. A alma e os pés são intrínsecos. Seminalmente juntos na tarefa da procura. Origem e destino. Quando me encontro sentado, pés e alma vogam aflitos. Não se encontram. O seu contacto perde-se por meio do corpo em descanso. Se me deito, os pontos cardeais esbatem-se de tal forma, que tal como uma qualquer gota de tinta clara se confunde na abundante água onde se escoa. Dilui-se. O corpo já não é, então. Também aí, a solidão deixa de ter sentido. Pausadamente, a alma se vai erguendo e, na distância do seu olhar distante, me observa, com todos os seus olhos de Hidra, me toca com todas as suas mãos de Xiva, me envolve nos seus labirintos de Dédalo, me tortura nas amarguras de Tântalo. Me abandona comigo. Só. Nesse momento cerro os olhos para me confundir no destino. Nada transporto comigo para que as alfândegas não me macem com perguntas de circunstância e me questionem sobre o trajecto. Senão, viro as costas e caminho nessa linha que não é de uns nem é de outros. É. Apenas. Caminho. Só. Com a esperança que os meus braços não me atraiçoem pendendo mais para um lado que para o centro de mim, que me equilibro no percurso dessa linha, que não é de ninguém, mas é onde vou. Só. O meu percurso. Na minha senda.

Se um rio sabe que vogo, envia-me um pássaro, que percorre searas, como quem percorre seios femininos que alimentam os que têm fome. Dão de beber a quem tem sede. Só. Com o olhar. Não lhes é permitido que repousem sem que anunciem o rio que os envia. Não podem descansar, por mais longínqua que seja a viagem, o voo, o destino. Quando vislumbro uma asa ou ouço um longo grito, não sei de onde vem. Ainda. Por isso continuo nessa linha imaginada, de ninguém. Só, me detenho no rio que cresce. Primeiro em pequenas manchas de espuma branca na areia diurna. Quando arrefece e a noite se afigura, as vagas agigantam-se como que me envolvendo. Impedindo-me assim de adormecer. Porque tenho frio. Porque o som me atordoa. Porque o grito da ave se sufoca a si mesmo. Porque o escuro me impede. Porque não quero. Adormecer. Só. Porque a areia me dói nos pés e a alma se afoga no pranto marítimo da praia deserta. Imensamente deserta. Só. Me basto. Só. Me quero. Só. Espero então que a manhã se debruce no horizonte. Estenda o seu manto diáfano e dê forma às coisas. Que as torne legíveis. Que lhes dê cor e luz e sombra e penumbra e alimente as árvores onde me sento por debaixo, protegido do olhar dos homens que caminham sós, também eles por caminhos que só eles sabem, ou querem, ou ignoram, ou tanto lhes faz. Talvez não se importem. Talvez apenas queiram ir para onde os pés e a alma os levam. Para lugar nenhum, que é afinal todos os lugares, esse local onde todas as almas solitárias se encontram. Sós. Cegas. Mudas. Quedas.

Hoje, é um dia que terá tido um início. Terá um fim, por certo. Todavia, deitei fora o relógio. O tempo já não tem importância. Teremos sempre o Livro de Job para ler.


LAM; “Há dias assim. Apenas dias.” In “O Pombo Molhado”; Edições Afa-Zer, 2015 


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