Photo © Henri Cartier-Bresson - Magnum Photos
Dou corpo à solidão, pois é dela que me alimento
todos os dias. Percorro todas as avenidas, ruas, becos e pátios da memória à
procura. De algo. Ando sempre à procura. De algo. Por vezes, sento-me num
banco, ou num qualquer recanto mais sombrio, porque me doem os pés. Ou então é
a alma. A alma e os pés são intrínsecos. Seminalmente juntos na tarefa da
procura. Origem e destino. Quando me encontro sentado, pés e alma vogam
aflitos. Não se encontram. O seu contacto perde-se por meio do corpo em
descanso. Se me deito, os pontos cardeais esbatem-se de tal forma, que tal como
uma qualquer gota de tinta clara se confunde na abundante água onde se escoa. Dilui-se.
O corpo já não é, então. Também aí, a solidão deixa de ter sentido. Pausadamente,
a alma se vai erguendo e, na distância do seu olhar distante, me observa, com
todos os seus olhos de Hidra, me toca com todas as suas mãos de Xiva, me
envolve nos seus labirintos de Dédalo, me tortura nas amarguras de Tântalo. Me abandona
comigo. Só. Nesse momento cerro os olhos para me confundir no destino. Nada transporto
comigo para que as alfândegas não me macem com perguntas de circunstância e me
questionem sobre o trajecto. Senão, viro as costas e caminho nessa linha que
não é de uns nem é de outros. É. Apenas. Caminho. Só. Com a esperança que os
meus braços não me atraiçoem pendendo mais para um lado que para o centro de
mim, que me equilibro no percurso dessa linha, que não é de ninguém, mas é onde
vou. Só. O meu percurso. Na minha senda.
Se um rio sabe que vogo, envia-me um pássaro, que
percorre searas, como quem percorre seios femininos que alimentam os que têm
fome. Dão de beber a quem tem sede. Só. Com o olhar. Não lhes é permitido que
repousem sem que anunciem o rio que os envia. Não podem descansar, por mais longínqua
que seja a viagem, o voo, o destino. Quando vislumbro uma asa ou ouço um longo
grito, não sei de onde vem. Ainda. Por isso continuo nessa linha imaginada, de
ninguém. Só, me detenho no rio que cresce. Primeiro em pequenas manchas de
espuma branca na areia diurna. Quando arrefece e a noite se afigura, as vagas
agigantam-se como que me envolvendo. Impedindo-me assim de adormecer. Porque tenho
frio. Porque o som me atordoa. Porque o grito da ave se sufoca a si mesmo. Porque
o escuro me impede. Porque não quero. Adormecer. Só. Porque a areia me dói nos
pés e a alma se afoga no pranto marítimo da praia deserta. Imensamente deserta.
Só. Me basto. Só. Me quero. Só. Espero então que a manhã se debruce no
horizonte. Estenda o seu manto diáfano e dê forma às coisas. Que as torne legíveis.
Que lhes dê cor e luz e sombra e penumbra e alimente as árvores onde me sento
por debaixo, protegido do olhar dos homens que caminham sós, também eles por
caminhos que só eles sabem, ou querem, ou ignoram, ou tanto lhes faz. Talvez não
se importem. Talvez apenas queiram ir para onde os pés e a alma os levam. Para lugar
nenhum, que é afinal todos os lugares, esse local onde todas as almas
solitárias se encontram. Sós. Cegas. Mudas. Quedas.
Hoje, é um dia que terá tido um início. Terá um fim,
por certo. Todavia, deitei fora o relógio. O tempo já não tem importância. Teremos
sempre o Livro de Job para ler.
LAM; “Há dias assim. Apenas dias.” In “O Pombo
Molhado”; Edições Afa-Zer, 2015
Sem comentários:
Enviar um comentário