Ser impossível é ser nada. É ter a oportunidade de uma noite
em branco para se rever. Contar os pontos de luz no tecto filtrados pela
persiana do quarto sempre que um carro passa na rua. Ver-se acordado, é um
exercício só de alguns. É não ter relógio, nem manhãs, nem segredos nocturnos.
É não ter medo que o futuro seja ainda uma porta por abrir. Ser impossível, é
ter na mão o desejo de te compor. Fazer de ti uma sinfonia. Mais simples ainda.
Um quarteto de cordas em que toco o teu corpo violoncelo, modelo nas minhas
mãos de marinheiro, de muitas noites de vigia, muitas noites de sol no verão
árctico. Muitas noites brancas e em branco. Muitas noites contigo no
pensamento, no coração e nas mãos cerradas dentro dos bolsos, naquele balanço
marítimo. Não tenho corpo. Ouço, no navio, os cânticos de sereia dos
marinheiros de outrora. Quisera eu amarrar-me ao mastro para que não me
arrastasses no teu lamento, no teu encanto. Nada disso se passa no tecto do meu
quarto. São as vozes nocturnas que passeiam na rua que trazem o teu lembrar. O
teu sono agitado. O teu grito nocturno. O teu suor, as tuas lágrimas que eu
beijo dentro do teu sonho. Abraças-me com força e pedes-me para te esconder,
para que não te levem para onde não queres estar. Agora estás tranquila, mas
aguardo o teu suspiro primeiro, depois um soluço, a seguir o grito. É sempre no
grito que te levantas e me olhas como a um estranho, mas mesmo assim me agarras
como se eu fosse a última coisa do mundo. Por onde andaste para chegares assim
tão condenada? As tuas feridas sangram. Vejo-as reflectidas no lençol. Tem sido
assim desde que te resgatei naquele porto do norte onde andavas à deriva. Desde
esse dia, sou o teu médico, o teu confessor, o teu amante, o teu abrigo. Desde
esse dia que me olhas dessa maneira no sonho. Depois acordas e ficas a soluçar
no meu peito. Depois de acordares afago-te o cabelo e te encosto a mim, para
que adormeças de novo, para de novo acordares nesse grito lancinante de gaivota
ferida.
Há muito que não durmo de noite para te proteger. Sinto que
no quarto há outro animal estranho que se enrola em nós e nos deixa
estranhamente calmos à espera do perigo. Outro carro passa na rua. Agora o
desenho da janela semicerrada percorreu o meu corpo despido e não me reconheci
no espelho do quarto. Desde que chegaste que sou outro em mim. Um estranho
dentro de outro estranho. Passei de marinheiro a vagabundo de almas. As
profissões não são diferentes, só que na nova nunca sei quando vou dormir.
Penso em sair, mas o gato olha-me da porta do quarto. É um gato que também não
dorme de noite. É um gato consciência que me obriga a ficar de pé, indeciso. O
gato não sai da porta, eu não saio da janela, tu não sais da cama, onde agora
dormes. Ao menos tu consegues dormir, embora aos soluços, com lágrimas e com
sonhos agitados, que sei pela tua mão que não se aquieta. Tento sair do quarto
mas o gato não se mexe. Ficamos frente a frente a olharmo-nos nos olhos. O gato
sabe que tu vais gritar de novo e quer-me aqui. Afinal nada precisa de mim, há um gato que te vela.
Gosto deste jogo da insónia. Há já tantas noites sem dormir.
Nunca me pensei assim, embora fosso meu mister guardar o navio quando o dia se
ia até que voltava, e me encontrava no sonho desperto para si. Por isso me encontraste. Agora que vejo nos teus olhos de
criança perdida a razão por me teres encontrado, quero que saibas o meu nome.