Acordou naquela manhã como nunca havia despertado antes. Nada
estava no lugar que seria o certo, como certo era o acordar todas as manhãs. Primeiro
a mente, depois as mãos, os pés, o corpo. Por fim os olhos abriam-se para
aquele fio de luz que deliberadamente deixava escorrer para que o quarto não
fosse só um útero. Havia de nascer repetidamente, uma e outra vez e ainda mais
uma vez, todas as que fossem necessárias para se completar. Uma em cada nova
manhã. Um dia novo. Novos pensamentos, novas palavras, novas ideias, muito
embora tudo reciclado dos escombros dos dias anteriores. Uma repetição, mas uma
nova leitura, mínima mas forçosamente nova. Outra interpretação dos mesmos
signos. O mesmo livro com diferente leitura. Impedia-se chegar ao termo pois
não se iria permitir a um fim absoluto. Todavia, aquele desadormecer era um começo
diferente. A luz que se insinuava tinha uma outra tonalidade, desigual. Irreal
quotidiano.
Sentiu e deixou que o estranho lhe invadisse a pele, se
tornasse na sua cápsula, que nada vindo de fora alterasse aquele sentido íntimo
da transformação que se operava no que mais de subterrâneo sabia de si. A água
tépida caía, singular, por sobre a cabeça, os ombros, diluindo-se aos pés para
desaparecer, incólume no ralo por onde desvaia a sua vida anterior. Olhou-se ao
espelho, baço de vapor e adivinhou as pregas dos olhos agora despertos. A barba
teria de esperar e nem ao desalinho do cabelo deu cuidado. Envolveu-se no
roupão que lhe extinguia a humidade acumulada. Na cozinha, pegou numa maçã e
recriou o pecado original, mas à sua volta nem Eva nem a serpente testemunhavam
o novo ser. Abriu a janela e absorveu tudo o que um mundo lá fora lhe trazia em
golfadas, a cada inspiração. A brisa estremunhada da cidade, as vozes alteradas
das crianças no pátio da escola numa orgia de liberdade cerceada pelo gradeamento
do pátio e o esvoaçar plano das gaivotas, com o rio ali tão perto, para além
dos telhados todos iguais, não mais do que tampas de caixas que guardam
segredos que só aos seus ocupantes interessam. Voltou ao quarto, levando
consigo aquela atmosfera de civilização e vestiu-se lentamente. Primeiro as
meias, depois a roupa interior, por fim umas calças de ganga puídas e uma
camisa de flanela sem cor. Passou então as mãos pelos cabelos para lhe dar
alguma ordem. Tirou um cigarro do maço já aberto e acendeu-o maquinalmente
inspirando fundo aquele fumo azul, junto com o céu que vinha da cozinha pela
janela escancarada. Antes de sair, pegou na chave de casa que juntou ao
isqueiro no bolso da frente. Ainda tinha tempo para um café.
Na rua, a ordem dos dias permanecia inalterada. Sempre os
mesmos rostos, os mesmos gestos, os mesmos esgares que numa altura remota denunciavam
sorrisos, o bom dia maquinal e a mesma pergunta, repetida vezes sem conta. Se
era café? Sim, era. Queria desmontar aquela pergunta estupida mas não esteve
para isso. Implicava mais conversa que ele não tinha, nem lhe interessava. Se ele
seria café ou outra coisa qualquer, só a ele podia dizer espeito. Aquilo que
queria era saborear aquele gosto amargo e quente e mantê-lo no conforto do
estomago até que outro cigarro substituísse o anterior. A repetição dos gestos
permitiam-lhe chegar sempre àquela primeira frase com que começaria o dia. “Então,
vinda do sul, uma sombra em forma de nuvem trazia o calor que o descobria”. Era
uma frase sem sentido que a única coisa que dizia era que, algures no
hemisfério norte, uma pessoa precisava desse calor para ser. Geograficamente discutível
assim como vazia de qualquer sentido. Fustigou o passo. Tinha pressa de se
sentar ao computador e escrever aquela frase. A partir dali, seriam oito ou
mais horas de letras, palavras, frases, capítulos inteiros a que tentava dar um
sentido, somando páginas a outras páginas para no fim se sentir vazio. Mas
aquela manhã tinha sido diferente. Não tinha saído de um útero mas de um lugar
ainda mais profundo e denso.
“Então, vinda do sul, uma sombra em forma de nuvem, parecia
trazer o calor que o embalava”.
“Envolto no mistério daquela massa gasosa, um homem
sentou-se no cais à espera e demorou-se até que toda a alma lhe doesse. Quando por
fim se apercebeu da triste realidade, levantou-se, sacudiu o pó dos dias
pousado há muito na sua roupa repetida e partiu. Desde esse dia ninguém mais o
viu. Fora-se para sempre. O que esperava, soube-se mais tarde, mudara de vida e
abandonara-o. A ele restou-lhe seguir o seu caminho, agora mais leve, pois só
podia contar consigo e mais não queria. Demorara a entendê-lo, mas fizera-o a
tempo. Pegou naquilo que ainda possuía, a sua esperança, e foi para sul, até
que a nuvem se desfizesse e apenas o calor perdurasse.”
LAM; A (cor) Dar, Outubro 2012
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