sábado, 25 de fevereiro de 2012

“À sombra das acácias, escondes teu corpo sofrido.”




A velha me falou assim. “És um homem-menino. Te guardas sem saber, no escondido das lembranças. Perdeste-te no tempo que já foi”.
Eu baixei os olhos com a vergonha das verdades. Eu já não me sabia havia muito. Ela continuou.
“Deixa que eu remomorie teu passado. Vem no meu corpo, onde os filhos dos meus filhos cresceram para lá de se fazerem eles homens também, tanto, que já me esqueceram. A minha idade, viu morrer e nascer muito capim. O que me resta, neste despojo de ossos, é uma mocidade engelhada, vestida nos panos que já eram dos outros antigos, que vou gastando aos poucos, até que se me finem os dedos, e mais não possa entrelaçá-los para me resguardar da chuva.”
Eu me deixei quieto enquanto minhas lembranças iam e vinham, como socalcos no rebordo da praia. Me sentia peixe fora de água, nessa asfixia do ar, que era demasiado para que meus olhos enxergassem um prenúncio de fim.
“Vem p’ra meu seio, que eu te dou o que precisar”.
A velha me sentou naquele colo esqueletado, moribundo de vida, e me encostou a minha cabeça no seu peito, para que sentisse o fim do que ela já foi. Fechei meus olhos naquele negrume, e me vi rodeado de meninada, que ria e chorava e gritava, tudo no mesmo tempo, até que esqueci quem eu mais era, e fui morrendo no que fui. A velha não falou mais, como se fosse ela que estivesse chupando aquela secura que já foi leite, de encher barriga, tirando a fome de criança pequena.
Quando abri os olhos, pela manhã, descansava minha cabeça num saco gasto e frio. A velha se finou, dando-me de novo existência. Aquela vida que nunca tivera, nem sonhava ter tido alguma vez.
Agora vou amontoando terra por sobre o meu futuro. Lá fundo, no buraco, o que restou de toda uma estória, passada por gerações guardadas no remanso do tempo, se guardava para se juntar aos outros, mais velhos ainda, para que voltasse a ser moça.
No descanso da ferramenta de coveiro, olhei fundo nos meus olhos e já podia ser eu, por fim.
Nunca soube seu nome, nem como chegámos um ao outro. O importante era que, um novo passado podia ser recontado aos meus netos, esse rebentos dos filhos que eu sabia, ia fazer.
Na sombra daquela Boabá, fiz da terra em volta, minha mulher, e pude adormentar em paz.
Agora, tudo estava no lugar que era seu por propriedade.

Orlando Munhiça, na cidade das Acácias. “Um dia em África”; Conto a publicar

Sem comentários: