terça-feira, 24 de abril de 2012
sábado, 21 de abril de 2012
O Labirinto I
A porta havia-se fechado delicadamente. A sua memória recuou para um tempo simultâneo em que aquela porta se fechou consigo lá dentro, numa sobreposição de instantâneos suspensos no tempo, abertos em todos os sentidos, num filme sem-fim. De todas as portas que ouviu, nenhuma apresentava aquela subtileza. Foi um encostar ameno em que o trinco timidamente se libertou, ficando no ar um silêncio de casa vazia, de onde todos os habitantes já tinham saído desta vida mas ainda permaneciam sentados, ou deitados, nos respectivos cantos. Foi cerimoniosamente que aconteceu. Um evento. Mais do que um acaso, uma intensão de deixar ainda mais vazio aquele espaço já de si ausente de qualquer existência. Às imagens de uma porta que se fecha infinitamente na sua memória, junta-se o pingo cadente de uma gota de água, monotonamente persistente, metálica e líquida, prolongando-se no eco de si própria, como uma melodia minimalista, repetitiva e auto-regeneradora, em todos os cambiantes audíveis. O som batia nas paredes, nas janelas, nos móveis e em si próprio, que os duplicava inconscientemente na cabeça, onde camadas de sons de pingos cadentes e de portas a fecharem, se intercalavam com as imagens desses pingos e dessas portas. Sempre o mesmo pingo e nunca o mesmo. Sempre a mesma porta e nunca a mesma, porque o tempo, começava então a pensar para além do presente, não se retia em nenhuma direcção. Era o mesmo tempo em todo o lado, tal como era o mesmo pingo e a mesma porta, sem nunca serem os mesmos elementos, pingo e porta. Queria ser lúcido, mas tudo o que via e ouvia era aquela porta no passado e aquele pingo no presente. O seu pensamento vogava num limbo de sons voláteis como o fogo. Queimava. Deixava de fora a realidade a que se queria ancorar e que ao mesmo tempo, sempre que a aflorava, o amordaçava. O tolhia. Estava prisioneiro daquele instante, como se toda uma vida se resumisse a um clique, simples, de baixa frequência, como a sirene de um navio que se deixa de ouvir com os ouvidos e é o corpo todo o receptor sonoro. Batia-lhe no peito, ferindo-lhe os pulmões, o coração, o estômago, os intestinos, numa dor que se avolumava numa nuvem ao seu redor, e o pingo que não parava, e ele sem forças para se levantar, para gritar. A angústia ia tomando corpo numa náusea absurda. Apetecia-lhe vomitar, mas eram os olhos fechados que teimavam em soltar grossas e longas lágrimas que o queimavam nas mãos. O mundo abria-se então num abismo infindo que excedia a razão.
LAM
quinta-feira, 19 de abril de 2012
A memória das palavras
Das palavras saem gumes
afiados que deixam riscos de sangue em quem passa.
Nos passeios labirínticos
da vida, sementes multiformes, vocábulos soltos, simples argumentos de
inutilidade.
Ramos altos de acácias
desejam o princípio do céu sem deixarem, nunca, a terra onde se fixaram. Das raízes,
disse-se. Do chão que as prende, sabe-se.
Temos dois braços, cinco
dedos em duas mãos. São verbo, substantivo e sujeito. Dos pés, os passos que
voltam sempre ao mesmo lugar. Distante. Daqui. De sempre e de nunca. Agora.
Labiríntico desejo de
partilha, segurando com a força do hábito o saber da perda, a cada instante,
infinitamente distante. Infinitamente longe de qualquer gesto. Infinitamente
gasto.
Parto de mim. Um parto
que é nascer e ir. Chegar e voltar no mesmo tempo. Uma viagem que não tem
começo nem acaba. Nunca. Palavra definida pela sua incompletude. Trajecto já
acabado quando ainda sequer começou.
Porque não voam as
árvores? Porque se beiram nos caminhos, estáticas, desejando o céu, só porque,
de altas, não vêem o chão em que pisam, com a sua sombra dilatada pelo sol?
- Tem uma árvore, sombra
de noite?
Migram os pássaros, as
nuvens, os homens e as suas fronteiras. Migram as marés, os barcos e os peixes
que neles viajam, dentro e fora. Dentro, porque é a sua natureza de ser peixe.
Fora porque é da natureza do homem viver do seu infortúnio. Mas na superfície da
vida, de todas as vidas, nada acontece.
Quando um beijo nasce, é
já um gémeo de outro. Quando um beijo morre é sinal de não haver nunca nascido.
Agora não é um tempo. Agora é um lugar. Intemporal e seguro, como seguras são
todas as palavras caladas. Estas não sangram por fora. Estas são lugares
escondidos pela língua, pelos dentes, pela boca fechada. Mas elas crescem,
surdas e infindas, até que o grito as solte. Depois já é tarde de mais.
Fecham-se os caminhos.
Caem as árvores. Fogem os pássaros e os peixes, e até as marés se aquietam,
olhando de soslaio a lua que as governa.
A lua, oh a lua. Esse sol
noctívago que desassombra os amantes fugidos às leis que os prendem. De nenhum
lugar. Para lugar nenhum.
- Sabias que as árvores
dançam, nocturnas, nos caminhos que cercam?
LAM
sem titulo
As palavras doces do
vento, o vento certo das madrugadas, o frio das noites sem sono e tu ali, a meu
lado. O gesto que seria necessário para abrir uma porta e fecha-la e dizer-te o
segredo dos pássaros, num aceno de luar, enquanto dormes. Estou a teu lado. Um
lado que só existe nos amantes. O lado de dentro. A suave música da noite,
polvilhada de estrelas, embala-te. O teu sono é sereno, de criança, adormecida
nos meus braços. Tudo o resto é silêncio. O tempo prolonga-se no meu olhar para
além da janela. As sombras incomuns, que todas as noites nos visitam quedam-se
junto ao parapeito. Desta vista não há árvores, mas os seus rumores sobressaem
na noite quente. O calor do teu corpo veste o meu corpo, ainda frio pelo rumor
da alva. O meu passeio nocturno, solitário, está a um abraço do fim. Estás aqui
a meu lado. É em ti que me refugio, é em ti que me deito, é em ti que me
amanheço.
LAM
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